O desafio dos 300 quilómetros
04/03/2016Lembrei-me esta semana de falar sobre o patamar dos 300 quilómetros no transporte de mercadorias a propósito da boa notícia que a Alcont divulgou esta semana e onde expressou o desejo de migrar para a ferrovia os tráfegos que percorram distâncias médias a rondar os 300 quilómetros.
Este número não é um acaso visto que é bem conhecido dos decisores estratégicos no setor ferroviário, em particular na Europa. Com efeito, o Livro Branco dos Transportes da Comissão Europeia recupera e sublinha este patamar: a estratégia fundamental no transporte continental de mercadorias é retirar às estradas os transportes que superam os 300 quilómetros, apostando nas vias fluviais e, sobretudo, nas ferrovias.
Não relacionado com a Alcont, que aliás ao indicar distâncias médias faz supor que não descartará o uso do transporte combinado Ferrovia + Estrada para distâncias inferiores, propus-me por isso discutir este patamar que vem sido tido como uma absoluta definição do ponto a partir do qual o transporte ferroviário é competitivo e até ao qual o transporte rodoviário reina sem contestação.
O nosso país, mesmo com as imensas restrições à competitividade que estão presentes na sua rede ferroviária (e que vão da curta cobertura territorial, às rampas omnipresentes e até às velocidades comerciais praticadas), é no entanto um caso de estudo pois desafia estes patamares internacionalmente aceites.
Há, evidentemente, casos de excepção e que não se enquadram na definição genérica deste patamar a partir do qual é recomendável atrair as ferrovias e até ao qual se deve deixar o camião tratar de tudo. Tráfegos de produtos como o carvão, geralmente de volumes elevadíssimos, existem por todo o lado assegurados por comboio com distâncias muitas vezes tão pequenas como 15 quilómetros (e até menos). Pelo volume, também outros tráfegos se podem enquadrar numa excepção a esta regra – como os tráfegos de cimento.
Mas para lá dos tráfegos que por serem excepcionais não acatam a regra dos 300 quilómetros (em Portugal ou lá fora), Portugal tem para oferecer vários exemplos que permitem discutir o papel do transporte ferroviário de mercadorias mesmo para distâncias inferiores a 300 quilómetros.
O melhor exemplo é, evidentemente, o do transporte de contentores. É o melhor exemplo porque falamos aqui de volumes relativamente baixos entre origem e destino, já que pelo menos um dos dois conhece uma alta variedade – se a origem pode ser comum (um porto, por exemplo), já os destinos são tantos quantos os clientes abrangidos pelo transporte marítimo. No nosso país, ainda antes do desenvolvimento de corredores tipicamente europeus (pelos padrões da Comissão Europeia) como Sines – Leixões, dois grandes corredores nasceram e cresceram contra todas as apostas.
Entroncamento – Sines trata-se de um corredor de pouco mais de 200 quilómetros (por estrada) e Bobadela – Sines de pouco mais de 150 quilómetros. E, no entanto, a ferrovia não só foi capaz de se inserir nesse mercado tão particular como de baixar consideravelmente os custos unitários de transporte, mesmo num contexto em que os comboios fazem muito mais quilómetros do que os camiões por via rodoviária e num contexto em que o transporte de mercadorias por via férrea está longe de ter a sua performance mais eficiente, como resultado das severas rampas existentes sobretudo na linha de Sines.
São aliás casos de estudo que motivaram uma interessante investigação de autores nacionais precisamente discutindo o standard europeu dos 300 quilómetros e onde se conclui que aliás será difícil definir políticas que promovam algo que o mercado está já a tratar de promover, pois o sucesso de tais operações rodo-ferroviárias não é previsível à luz do conhecimento científico existente relativo a variáveis de escolha do modo de transporte. A solução existente nos eixos já referidos não seria, à partida, vantajosa o suficiente para retirar camiões das estradas.
Isto parece indiciar que a vantagem proporcionada pelos agregadores e operadores de transporte combinado vai muito para lá de níveis de serviço no transporte e no preço oferecido, tocando provavelmente em temas como a armazenagem ou a confiança. No caso português é ainda possível depreender que a simplificação burocrática que transforma os terminais ferroviários do Entroncamento e Bobadela em autênticos postos alfandegários avançados dos portos servidos pode também ser um factor crítico de sucesso que permita à ferrovia impor-se como a solução mais racional para todos os intervenientes nas várias cadeias de abastecimento afetadas.
A capacidade garantida pelo modo ferroviário pode ainda, na realidade, ser uma dimensão de flexibilidade do próprio transporte na perspetiva de ser mais fácil responder a picos de tráfego. Isto pode ajudar a transformar um tipo de transporte claramente menos flexível num meio que, numa dimensão crítica, acabe por ser mais flexível que o próprio camião.
O transporte combinado tem certamente na mão as condições para desafiar várias convenções existentes no mercado dos transportes e no nosso país, mesmo sem as condições ideais reunidas, encontramos já exemplos relevantes o suficiente para não nos limitarmos a cumprir as expectativas europeias. Estas, à luz dos vários casos de estudo nacionais, parecem pouco ambiciosas e possivelmente desenhadas com a realidade de países de outra dimensão geográfica.
Portugal é um território muito interessante para esta reflexão porque não oferece especiais restrições ao transporte rodoviário como noutras áreas geográficas onde o transporte rodo-ferroviário aparece privilegiado – como a região Alpina. Tem aliás estradas de topo e alternativas sem portagem perfeitamente à altura das necessidades do transporte rodoviário. O transporte ferroviário não conta, por isso, com a ajuda de taxas especiais ou até bloqueios efetivos à circulação rodoviária e, ainda assim, consegue exibir credenciais.
João Cunha