Nos transportes, sobra Estado e falta Estado
10/03/2018O setor dos transportes é um infeliz exemplo da caldeirada de políticas públicas protagonizadas por todos os partidos desde o 25 de Abril. Entenda-se daqui uma total ausência de consistência técnica e ideológica – privatiza-se ou concessionam-se infraestruturas, estatiza-se operação, regulam-se burocracias, ignoram-se métricas de controlo… e por aí fora.
Tirando os comunistas, que defendem a estatização por atacado e à melhor maneira soviético-venezuelana, os restantes partidos não têm uma visão mais do que casuística das intervenções e do papel do Estado neste setor. Num passado próximo, com “suave” regulação estatística, o Estado recorreu à privatização de novas infraestruturas como forma de desorçamentar os seus investimentos – quando o critério seria a pertinência de ter as infraestruturas na esfera privada e demais considerações económicas, nomeadamente.
Aquilo que defendo é uma estratificação das políticas públicas em três níveis:
- De provisão direta assegurada pelo Estado
- De provisão com financiamento assegurado pelo Estado
- De puro mercado
Resumidamente, o Estado deve providenciar diretamente tudo o que não tenha um mercado concorrencial. À partida, com pontualíssimas exceções onde poderei nomear autoestradas alternativas em territórios de forte densidade, parece-me que aqui cabem as infraestruturas. Não havendo um mercado, o Estado conseguirá sempre providenciá-las a um custo mais baixo. É ainda uma fórmula que garante a transparência do esforço dos contribuintes e responsabiliza por inteiro os governos.
Existem depois situações onde o volume de necessidades, por imperativos sociais, de minimização de externalidades e outras, não é acompanhada de uma direta recolha de receitas no perímetro do negócio em causa. Simplificando, em mercados concorrenciais como a operação de transportes pode muitas vezes ser aconselhável garantir uma oferta superior aquela que as receitas colectáveis no perímetro da operação permitiriam financiar no imediato – imaginemos territórios de baixa densidade onde em mercado puro não compensaria ter uma carreira de autocarros ou uma área metropolitana onde se julga pertinente muscular a oferta ferroviária como desincentivo à utilização do automóvel particular e obter por aí vantagens económicas globais. Nestes casos, o Estado deve estabelecer métricas que permitam caracterizar o nível de serviço pretendido, licitando em mercado a contratação desses níveis mínimos. Desejavelmente, devem ser utilizadas fórmulas que premeiem eficiência e competência comercial, distribuindo pelos operadores e pelos contribuintes a ultrapassagem dos objetivos.
Por fim, existem as situações de puro mercado. Onde a sociedade não tem necessidade de incentivar uma oferta especialmente desenvolvida ou onde a procura e coleção de receita dos serviços garantem desde logo o interesse para os operadores. O papel do Estado neste ponto deve ser meramente regulatório e garantir por essa via o incentivo ao mérito e à iniciativa da sociedade.
Defendo assim que as políticas públicas evoluam, de modo previsível e consistente, para esta realidade hierárquica. O Estado deve poder assumir um papel mais presente na construção e gestão das infraestruturas de transportes, sendo muito pouco recomendável o prolongamento de concessões existentes. Hoje em dia, graças à racionalização das regras orçamentais, não existe sequer a “vantagem” da desorçamentação, que tanta loucura financeira permitiu.
Por outro lado, defendo que o Estado procure sair da operação direta de transportes em todo o território. Em seu lugar, o Estado deve capacitar-se tecnicamente para cumprir a função insubstituível que hoje não cumpre: monitorizar a equidade na acessibilidade (uma garantia constitucional, em Portugal e na maioria dos países europeus), traduzindo na definição de serviço público mínimo ao longo do território as necessidades de contratação a licitar em mercado, por períodos que permitam uma maximização da concorrência e a maior estabilidade possível no tecido empresarial. A duração das concessões pode variar consoante o Estado queira dotar-se dos veículos, alugando-os aos concessionários, ou se preferir deixar a responsabilidade, por inteiro, aos concessionários. Esta segunda hipótese parece-me razoável para o modo rodoviário (veículos com ciclo de vida de 7 a 10 anos, em média), será muito mais duvidosa no modo ferroviário (veículos com ciclo de vida de 30 anos).
Esta proposta é especialmente importante para reduzir a iniquidade presente, onde apenas Porto e Lisboa têm apoios do Estado para facilitar a mobilidade dos seus cidadãos. Um modelo mais equilibrado, incluindo todo o território – reduzindo necessariamente os benefícios das áreas metropolitanas atualmente subsidiadas – é altamente aconselhável. O financiamento pode ser atribuído diretamente aos operadores ou, alternativamente, aos utilizadores do sistema, refletindo-se ou em tarifas artificialmente baixas ou em subsídios ao utilizador. A segunda opção tipicamente garante melhor redistribuição dos esforços estatais aos utilizadores com maiores necessidades e, não subsidiando diretamente os operadores, pode funcionar como motivação acrescida para que os operadores procurem soluções para captar sempre mais passageiros.
Esta opção impede a canibalização do mercado que tipicamente termina com serviços de muito má qualidade mas garante a concorrência pela necessidade de renovação em concurso, permitindo ao Estado maior previsibilidade nos custos a alocar ao sistema e poupando os contribuintes à cristalização dos patamares de eficiência e qualidade que hoje são manifestamente visíveis na maioria dos operadores públicos.
Por fim, o caso dos transportes em mercado puro. Será por exemplo o caso dos eixos de longo curso de alta densidade – como Lisboa ao Porto – onde o Estado deve, por imperativos sociais, garantir um nível mínimo de acessibilidade mas onde em geral pode deixar que o mercado se ajuste plenamente à procura verificada. Se no nível anterior já não faz sentido o Estado estar presente na provisão direta do serviço de transportes, neste nível pode chegar a ser uma completa aberração.
A orientação do Estado para os papéis em que é insubstituível tem de resultar num eficaz desempenho desses papéis. Atualmente o Estado não consegue garantir coisas tão simples como a coordenação de diversos operadores nas áreas metropolitanas – o que podia garantir licitando em pacote o conjunto da mobilidade, mesmo que repartindo volumes por diversas empresas -, não consegue garantir a universalidade dos títulos de transporte nem tem uma visão de conjunto do território no tema constitucional, absolutamente fundamental, que é a equidade na acessibilidade ao longo do território. Tudo isto resulta em obstáculos no acesso ao sistema de transportes, no desincentivo das populações por alternativas mais sustentáveis (quanto mais não seja no uso de solos) e em gritantes assimetrias territoriais que são manifestamente inconstitucionais.
Os temas da regulação, contratação e concurso do que é serviço público de transportes necessitam de um reforço claro da competência do papel do Estado. Ao contrário, a sociedade civil prova todos os dias ser muito mais capaz de se entregar à especificidade da operação, em ambientes competitivos e dinâmicos, ajustando-se às novas realidades, tecnologias e padrões de mobilidade.
Terminando com exemplos, nada mais lógico existe do que ter a rede ferroviária 100% detida pelo Estado. Nada é mais lógico do que o Estado deter a infraestrutura do Metro do Porto mas não a operar, licitando em concurso a concessão a privados da operação, como é feito. A comparação do Porto com Lisboa é, neste ponto, avassaladora. E nada faz mais sentido do que deixar ao mercado a operação, concorrência e competição de Lisboa ao Porto.
Um Portugal mais liberal nos transportes não é concretizável sem definir, racionalmente, os diferentes níveis de intervenção que Estado e Sociedade podem e devem ter. Esse poderá ser um contributo único, visto que nenhum dos outros partidos até hoje alinhou a sua visão para os transportes pela sua retórica ideológica, resultando no cenário atual de caos misturando aberrantes privatizações, desnecessárias provisões diretas e uma total negligência das obrigações constitucionais de equidade territorial.