Regra de Ouro orçamental ou encerramento

13/03/2018 0 Por Joao Cunha

Os caminhos de ferro portugueses estão numa encruzilhada óbvia que a classe política não consegue assumir, perdida nos seus soundbytes, lutas partidárias sectaristas e projetos de poder.

Sem insistir demasiado numa tecla em que temos carregado com insistência na história da Trainspotter, é possível traçar um retrato muito negro da rede ferroviária portuguesa:

  • Uma das menores densidades de todo o mundo civilizado;
  • Única rede da Europa ocidental a conservar na quase totalidade os traçados originais;
  • Indicadores de segurança em constante degradação, de acordo com o GISAF;
  • Eficiência da rede a cair de forma brusca, de acordo com a Infraestruturas de Portugal e do jornal Público;
  • Velocidades comerciais muito baixas, regra geral similares ao que era prática habitual na Europa no período entre guerras do século XX.

Claro que também há pontos positivos. Nos sistemas de segurança Portugal progrediu depois de uma década de 80 sanguinária e que nos trouxe por fim o Convel ou o Rádio Solo-Comboio, para citar os dois exemplos mais importantes.

 

Com as devidas distâncias, focando-nos nos atributos de competitividade económica mais importantes, a rede portuguesa está hoje num Estado semelhante ao do pós-Guerra, quando o então Estado Novo percebeu que não podia mais continuar o garrote financeiro. Sucessivos planos de Fomento procuraram aproximar a realidade nacional das melhores práticas, de modo a corrigir atrasos crónicos e que aliás não deixavam de se manifestar em números – uma operação ferroviária catastroficamente deficitária e um país sem soluções logísticas de modernidade.

É verdade que hoje em dia temos carris de 60 kg/m, que temos travessas de betão, sinalização automática, catenária e até controlo de velocidade na maioria das nossas linhas. Mas também é verdade que os caminhos de ferro continuam a divergir aceleradamente dos restantes modos de transporte e, por essa via, não contribuindo para um abaixamento dos custos logísticos e sociais no país na medida do que é exigível em pleno 2018.

O relativo mediatismo de algumas notícias recentes sobre caminhos de ferro – mais um descarrilamento na Beira Alta, o estado da ponte 25 de Abril ou a performance má da rede ferroviária – é um indicador de que as coisas estão a chegar a um estado onde começa a ser fundamental tomar decisões sérias sobre o que aí vem. Os políticos acenam com um Ferrovias 2020 já profundamente decepado no que eram os seus principais objetivos e soluções iniciais, convenientemente ignorando que não estamos perante meros problemas de segurança, mas de um problema de futuro – estará a rede nacional no patamar exigível para uma economia que se quer transformar?

Grosso modo, com a interrupção dos planos de Fomento em 1974, Portugal nunca mais voltou a ter uma visão estruturada do planeamento territorial e, particularmente nos caminhos de ferro, perdeu de forma óbvia a prioridade nas políticas públicas sobretudo quando se fala de infraestruturas de transportes. É verdade que em parte isso era inevitável, com a expansão do automóvel e o atraso desastroso do país nesse ponto. Mas, como em tudo, o que é demais faz mal.

É bastante penoso constatar que as grandes obras ferroviárias desde então eram planos preconizados literalmente no tempo da outra senhora. A variante do Pinheiro em 1980 ou a de Alcácer em 2010. Até a nova linha Évora – Caia constava já do caderno de encargos dos gabinetes de estudos de outra época. Mas isto é penoso fundamentalmente pela constatação de que o Estado se demitiu de estudar, de planear e de priorizar.

A visão sistemática e estratégica sobre o conjunto da rede e do território que serve e deve servir foi trocada pela casuística das urgências apresentadas por linhas em falência estrutural ou por favores partidários que alteram prioridades a gosto.

À medida que velhos eixos acumulam prejuízos e acumulam obsolescências, torna-se cada vez mais distante a linha que separa a necessidade de investimento do seu retorno potencial, condenando ramais uns atrás dos outros. Pior, a condenação de ramais foi sempre a condenação de territórios – nunca o Estado português se preocupou em refazer os eixos ferroviários, eventualmente trocando traçados obsoletos por outros novos, capazes de corresponder melhor às exigências atuais e até decalcando melhor as tendências de mobilidade das nossas populações e empresas.

As promessas de regeneração da rede são como a promessa de distribuição de paliativos a doentes terminais. Essa aliás é uma preocupante tendência dos últimos 20 anos: ao invés de terem aproximado os caminhos de ferro das populações e das suas necessidades, as sucessivas renovações foram antes sublinhando os atributos históricos das linhas. As mesmas velocidades baixas, as mesmas rampas elevadas e até a mesma distância, tantas vezes excessiva, aos centros populacionais que é suposto servir. O que foi feito então? Certamente, noutros níveis, bastante. Apareceram as catenárias, os controlos de velocidade, a autorização a elevadas cargas por eixo e a sinalização automática. Só que, tirando a autorização de cargas por eixo superiores, nada disto endereçou reais atributos de competitividade – quando muito, endereçaram critérios de exclusão de alternativas, corrigindo défices de segurança óbvios que existiam.

Se em 2018 continuamos a pensar em intervenções na rede como meros paliativos, seria importante isso ser assumido e assim retirado de inflamados discursos políticos intenções como a melhoria dos custos de transporte, a melhoria da mobilidade das pessoas ou as garantias de equidade e acessibilidade no território, que são aliás garantias constitucionalmente consagradas.

O atraso é, assim, fenomenal. Após o Ferrovias 2020, a concretizar-se como está agora previsto, Portugal ganhará apenas um eixo com condições interessantes – o Poceirão – Caia. No resto continuará a ser uma rede quase sem redundâncias, de baixas velocidades e baixas cargas e distante de tantos núcleos económicos fundamentais, onde podemos ver Viseu e Bragança, mas também Portalegre, Albufeira ou Leiria.

Está por isso claro se nada mudar nestas intenções, a rede portuguesa continuará a propiciar encerramentos futuros e a deixar ainda mais pedaços do país sem alternativas às estradas e sem a eficiência que uma boa rede ferroviária aporta.

O que motivará então tão grande desfasamento entre necessidades e sucessivos discurso políticos? Dinheiro, claro. Não me posso arrogar de classificar todo e cada governante como incompetente ou ignorante – não é certamente verdade. Mas se escolhem a via do silêncio ou da falta de ambição é porque, politicamente, essa é uma constatação mais fácil de gerir do que a constatação concorrente de que falta dinheiro para perseguir novos planos de Fomento para a nossa rede ferroviária.

Convido os mais interessados a lançarem-se aos arquivos e lerem esses documentos de então, esquecendo o ambiente político a que estavam associados. Nenhum plano pode começar sem um diagnóstico exacto de como estamos e de como estão os nossos concorrentes lá fora. O passo seguinte terá de ser eleger uma série de objetivos, preferencialmente genéricos, para alcançar. Exemplos? Colocar todas as capitais de distrito até 2h30 de Lisboa ou Porto, por exemplo. Outra? Ligar todos os portos comerciais por vias ferroviárias capazes de acolher comboios de mercadorias de 1500 toneladas com uma locomotiva apenas. Por fim, começar a apertar a malha – perceber onde estão os constrangimentos (em Portugal, são mais os quilómetros de constrangimentos do que os outros) e começar a pensar nas soluções.

Para termos os políticos abertos a pensar nisto talvez seja importante instituir uma medida muito mais estrutural, ainda que preferencialmente temporária: alocar à cabeça uma determinada quantia a investimentos ferroviários. Se o país está hoje tão preocupado com a sua ferrovia e se está tão preocupado com o fraco desenvolvimento do seu território, não estará reunida a urgência para uma medida tão séria?

Aqui ao lado, Espanha alocou ao longo dos últimos 25 anos qualquer coisa como 0,5% do seu PIB anual a investimentos ferroviários. Uma medida do género por cá traria quase 1.000 milhões de Euros por ano para a ferrovia – dificilmente, pensando a dez anos, será necessária tão grande taxa de esforço. Mas é por aqui que temos de ir: deixar de discutir uma determinada percentagem do PIB, que o Governo deve de imediato bloquear nas suas expectativas plurianuais.

Se calhar a regra de ouro orçamental pode ser a solução. Que partidos terão a coragem de bloquear à cabeça 0,4 a 0,5% do PIB, todos os anos, para refazer o sistema ferroviário português? Estão preparados?