Manutenção ferroviária como arma política? Cuidado com isso

Manutenção ferroviária como arma política? Cuidado com isso

26/07/2018 0 Por Joao Cunha

De certa forma era expectável que a politiquice de bancada trouxesse a sua arte também para a discussão ferroviária. Ainda nenhum partido com representação na AR trouxe factos concretos para discutir porque, naturalmente, estão mais preocupados em passa-culpas e spinning partidário que sempre nos empobrece, como nos empobrecem todas as acções sectárias.

Naturalmente que fica especialmente mal na fotografia quem agora ensaia desculpas para as suas acções e omissões presentes pois se há terreno de actualidade é o da manutenção. E explicarei porquê.

 

Manutenção ferroviária, regulação de ponta

Manter um comboio não é como manter um autocarro mas muito mais como manter um avião. Terá de haver uma entidade certificada (como a EMEF) a assegurar que os veículos reúnem as condições de segurança para que foram homologados. Essa certificação depende desde logo e sobretudo do cumprimento de um plano de manutenção, que é parte integrante da própria homologação do veículo, e de que é preciso fazer prova. O comboio pode estar excelente mas se falhou uma etapa do plano deixa de poder circular, tout court.

Os planos de manutenção estão organizados numa lógica de visitas diárias, semanais e outras, sendo estas últimas habitualmente dependentes de nº de horas de funcionamento ou quilómetros feitos, em função de análises de risco e garantias que dêem os diversos componentes a serem tratados periodicamente.

Por exemplo, há poucos anos atrás, uma automotora da linha de Sintra está obrigada a verificações a cada 20.000 km e depois a cada 40.000, 200.000 e de seguida 600.000, 1.200.000 e 2.400.000 quilómetros, estas três últimas já prevendo desmontagem total ou quase total e substituição de componentes, tudo isto além de inspecções de serviço diárias. Cada unidade cumpre cerca de 10.000 km/mês, pelo que se pode desde logo ter noção da periodicidade das várias etapas.

Sendo um processo em contínuo, nenhuma falha de manutenção hoje pode ser desculpada com manutenção por fazer no passado – um comboio que tivesse ficado sem manutenção adequada em 2014 por exemplo teria parado no limite ao fim de alguns meses, nunca anos. É por isso factualmente indesculpável o argumento que as bancadas do governo (BE e PCP incluídos) dão de que uma eventual pior manutenção no passado provocaria hoje paragens. Também é falso que esta situação possa por si só demorar muito a resolver – assim que as manutenções do ciclo de manutenção homologadas forem realizadas, o comboio regressa à via. Por exemplo a revisão dos 600.000 quilómetros demora 15 dias e as de maior frequência andam entre 4 horas e 2 dias.

 

Um pouco de história recente

No período da troika houve uma redução das verbas para manutenção (note-se que muitas das verbas são classificadas como investimento e além das intervenções ainda há compras de peças de parque – umas pela CP, outras pela EMEF, dependendo da criticidade). Isso provocou que a CP reduzisse ao máximo a frota disponível para a oferta que tinha (que é similar à actual, antes da redução do próximo 5 de Agosto).

Houve uma crise de disponibilidade de material na linha de Sintra, uma vez que houve um fenómeno de desgaste acelerado de rodados e durante alguns meses acumularam-se unidades paradas até finalmente serem adquiridos os rodados. Houve algumas supressões mas fundamentalmente a situação foi ultrapassada com redução do tamanho das composições (em vez de 2 automotoras por comboio, vários com 1) o que, num cenário de depressão económica e antes do boom do turismo, passou relativamente bem, pelo menos se a comparação for o cenário actual.

Tirando isso, a frota foi estando disponível com uma excepção – a insuficiência de unidades para os regionais em linhas não eletrificadas. A esse propósito na renegociação do contrato de aluguer com a Renfe em 2014 a CP acordou a expansão de 17 para 22 unidades alugadas e colocou em serviço locomotivas diesel e furgões-gerador, capazes de alimentar electricamente as carruagens do serviço Intercidades que desde então têm suprido faltas pontuais nas linhas do Minho e Douro.

A situação foi bastante tensa mas a operação não quebrou. E como dito no capítulo anterior, daqui não resultava nenhuma responsabilidade acrescida para o futuro, seria sempre só manter.

 

Situação atual

Além do pressuposto de manter o parque em funcionalmento, o anterior presidente da CP alertou muitas vezes que a empresa precisava de alugar material para no imediato acorrer ao aumento da procura, sobretudo no Longo Curso. Estava ele longe de saber que além de não poder crescer os meios ainda iriam determinar um decréscimo.

Além desta questão, a própria sustentabilidade da operação era duvidosa e eu próprio em 2016 levantava algumas questões a carecerem de resolução imediata. E nada disto presumia que a manutenção fosse limitada por comparação a anos anteriores ou que as necessidades crescentes de pessoal nas oficinas não fosse compensada – isto porque a lei das carreiras longas afectou especialmente a EMEF, de onde têm saído muitos operários, pois a geração que se está a reformar começava muitas vezes a trabalhar como aprendiz nos caminhos de ferro desde tenra idade. Toda a gente sabia disto.

Portanto se uma situação que em 2016 necessitava já de ações rápidas para expandir a frota – trazendo mais comboios em aluguer (solução que produz efeitos em 2 ou 3 meses), ampliando capacidade oficinal – foi ainda prejudicada pelo cancelamento dos planos para aluguer, pela não execução de investimento em equipamentos (rodados, mas também outros componentes de grande importância e valor) e finalmente por uma acelerada saída de capital humano da EMEF, que recebeu apenas 50 pessoas em 2017, muito longe das necessidades de pessoal que existem só com a aprovação da lei das carreiras longas.

Como é natural tudo isto só podia terminar assim. Comboios parados nas oficinas, equipamentos que não se compram para terminar as revisões, tudo bloqueado. Dou um exemplo – está na oficina do Barreiro a locomotiva diesel 1453, da série das que circulam no Douro com os comboios históricos e que ajudam a compensar alguma falha das automotoras. Só há 3 em serviço (1413, 1415 e 1424) e uma delas (1424) há muito que já devia ter parado para uma revisão geral. Têm sido feitas pequenas intervenções para assegurar que continua a andar antes de parar para a revisão, tentando não comprometer o essencial do plano de manutenção, e ela é dedicada a tarefas de fraco alcance quilométrico, para evitar desgaste. Isto porque a 1453 está no Barreiro há quase um ano (ou se calhar já passou mesmo um ano!) pois por falta de pessoal a sua revisão geral tem-se demorado (devia demorar, no máximo dos máximos, 2 meses).

Agora imaginem isto repartido pelas muitas séries de material circulante, pelos muitos tipos de intervenção a realizar com periodicidades diferentes, etc., etc. E somem-lhe ainda casos como a falta de rodados ou dificuldade de comprar sobressalentes para substituir componentes avariados, e imaginem o evidente caldo que aqui está.

Nem para o aumento da frota é preciso esperar anos. É esquisito que essa desculpa seja dada por quem anda há 2 anos a dizer que quer comprar precisamente porque demora e 2 anos volvidos nem concursos tenha em vias de lançamento (ou seja, com datas). Mas mesmo para o aumento, tendo nós a sorte da Renfe comprar demasiado material de que não precisa, temos imensas soluções para aluguer em Espanha. Há a prever apenas a adaptação com instalação de sistemas de segurança (comunicações e controlo de velocidade), homologação em Portugal e formação do pessoal. A última série que recebemos (592.2, sucedâneos dos 592 que vieram em 2011) demorou 2 ou 3 meses a autorizar e até já tivemos o caso de uma composição rebocada (Talgo VII) que em 2014 com a pressão da final da Liga dos Campeões foi autorizada a serviço numa questão de dias e com apenas uma marcha de ensaio. A sério que não há soluções?

O spinning tenta dizer-nos que nada se resolve em dias, mas é importante que fique reconhecido que na manutenção não há heranças tão duradouras nem soluções que tanto tardem. Se houverem recursos financeiros e as necessárias autorizações, os comboios serão reparados e voltarão ao serviço. É tão simples quanto isso.

Se é verdade que para resolver problemas de competitividade da rede ferroviária serão precisos muitos anos se começarmos agora (e ainda não começámos, o Ferrovias 2020 é muito insuficiente), o colapso operacional da CP é única e exclusivamente fruto das restrições existentes nos últimos 18 a 24 meses. Não existe tal coisa como manutenções em atraso para comboios ao serviço. Esqueçam isso.