40 anos de políticas ferroviárias em Portugal

40 anos de políticas ferroviárias em Portugal

26/08/2018 2 Por Joao Cunha

Depois da revolução de 1974, o modo ferroviário enfrentou um declínio acentuado em Portugal, fundamentalmente apoiado em duas motivações: o crescimento do automóvel e o desinvestimento generalizado.

Naturalmente que a primeira destas motivações é compreensível num país que tinha chegado a 1974 com níveis de automobilização muito baixos e claramente longe da média europeia.

A desordem financeira pós-PREC

Após a revolução, Portugal viveu tempos muito conturbados que o foram especialmente no sector ferroviário, um meio naturalmente prioritário para as aspirações políticas do novo regime.

Os planos de investimentos pararam praticamente todos com a revolução de 1974, já não se concretizando o IV Plano de Fomento.

Nos primeiros anos pós-revolução houve uma massiva transferência de gastos em capital para gastos com trabalho. Em 1973 a CP cobria 63% dos seus gastos totais de operação e em 1974 cobria ainda 60%, quando o aumento muito rápido dos salários acabou por determinar uma fortíssima quebra na sustentabilidade do negócio. Em 1975 baixou para 42% e acabou por estabilizar em valores em torno dos 45% até ao final da década.

A brutal pressão financeira na actividade ferroviária teve efeitos devastadores, na CP e fora dela. Desde logo a CP viu-se obrigada a adiar algumas encomendas já realizadas (de automotoras diesel à Sorefame, desde logo) e a reduzir ao mínimo essencial os investimentos. As renovações de via, que tinham acelerado imenso entre 1968 e 1973, ficaram limitadas à conclusão de algumas empreitadas ainda em curso. Pararam todos os esforços de melhoria de sinalização e segurança. Apenas o projecto ferroviário em torno do novo porto de Sines avançou. Em vez da nova linha Poceirão – Sines, apenas se realizaram os 6/7 kms entre Poceirão e Águas de Moura, alguns ramais industriais na zona de Sines e a aquisição de vagões, que se saldou num número de unidades inferior ao previsto.

A CP foi nacionalizada em 1975 mas a Sorefame manteve-se sempre privada e enfrentou problemas similares. O descontrolo nos gastos com salários, subidos por lei muitíssimo acima de qualquer referencial de produtividade e inflação, provocou um primeiro grande rombo na empresa, a que se somaram as dificuldades da CP, com o cancelamento e adiamento de encomendas. Além do mais, muitas greves foram decretadas neste período, afectando a capacidade produtiva da empresa numa fase em que se tentava afirmar no mercado norte e sul americano. Terá sido o canto do cisne, no virar desta década, para uma morte concretizada 20 anos depois.

Não está aqui minimamente em causa a justiça ou injustiça do que foi decretado, mas face à riqueza existente no país e ao que a CP conseguia cobrar (tarifas aumentadas sempre abaixo do que subiam os custos), o sector ferroviário foi delapidado financeiramente nos anos pós-revolução, a que se somava já um primeiro grande adiamento de investimentos, com todos os problemas a prazo que tal representa.

Os terríveis anos 80

É dos livros que em cenários de pré-bancarrota os transportes são sempre o que mais sofre – entre cortar salários, despedimentos e outros ajustes, mais vale sempre degradar a oferta de transportes, que apesar de tudo não está numa primeira linha de necessidades como é o caso da saúde, por exemplo.

O país viveu duas intervenções externas até 1983 e o sector ferroviário sofreu assim da rápida perda de sustentabilidade financeira, como visto atrás, e da incapacidade crescente do agora accionista único, o Estado, para compensar as insuficiências que ele próprio havia patrocinado.

O desastre era visível nas taxas de cobertura – em 1980, foi de apenas 38,8%, um mínimo de todos os tempos. Tal sucedia mesmo tendo a CP perdido 10% dos efectivos entre 1970 e 1980, tendência que pela evolução tecnológica se previa que continuasse. Tinha então 24.409 funcionários.

Nos anos 80 a rede começou a dar de si. O Estado Novo tinha investido grandemente nos anos 60 pois a rede estava obsoleta mas o esforço que devia ter sido reforçado foi, como já se percebeu, totalmente castrado. Esta foi uma década de uma mortandade ímpar na rede, com acidentes a sucederem-se sobretudo nas linhas de maior tráfego, fruto de falhas de sinalização (as mais frequentes), falhas do material circulante e falhas humanas, num contexto de tráfego crescente nos principais eixos e de quase total abandono na restante rede. Essa rede aliás estava em 1980 praticamente condenada – quase todos os ramais alentejanos e vias estreitas do Norte estavam ainda em estado de origem – os mesmos carris, as mesmas agulhas, os mesmos equipamentos de comunicações, em muitos casos até as mesmas travessas, havendo imensos casos de linhas montadas directamente sobre terra, sem balastro.

Depois de um pico de investimento em 1972, a rede atingiu o fundo do poço em 1980, com valores praticamente iguais até 1985.

Em 1985 foram aprovados vários decretos-lei de saneamento financeiro do sector e além dos objectivos macro mais importantes (desde logo o de aumentar substancialmente a taxa de cobertura da CP), a recuperação do investimento era absolutamente vital. Era fundamental intervir nas linhas principais, modernizando instalações, instalando sistemas de segurança diversos e prosseguindo um programa de aumento da eficiência, nomeadamente com a electrificação. Tal não veio a tempo de evitar mais uma imensa tragédia, quando a 11 de Setembro de 1985 o Sud Expresso chocou de frente com um comboio regional em Alcafache, no maior acidente da história da nossa rede.

Apesar de marcada pelos encerramentos, a segunda metade da década foi pautada por um fortíssimo aumento do investimento público em caminhos de ferro, a ponto de ter atingido mesmo o pico anterior, de 1972, no ano de 1989 (a preços de 1988). A prioridade foi para o material circulante (57 carruagens para os IC, 39 locomotivas eléctricas, 52 automotoras para suburbanos de Lisboa e um grande programa de aquisição de vagões) e para as infraestruturas (instalação de controlos centralizados de tráfego, instalação de sistemas de controlo de velocidade e comunicações, etc.). Foi ainda iniciado um grande programa de modernização da linha de Sintra, mobilizando investimentos recorde e onde a operação ferroviária era ainda em 1990 mais típica da Índia do que de um país europeu. Por fim, foi por fim lançada e construída a nova ponte ferroviária do Porto, obra programada deste os anos 50 e que acabou por ser acelerada perante o colapso iminente da ponte Maria Pia.

A ajuda dos dinheiros europeus serviu assim para estancar a grande hemorragia da rede, diminuindo drasticamente a mortalidade na rede e os acidentes ferroviários. Para a rede terciária – os ramais alentejanos e as vias estreitas de Trás os Montes – o dinheiro chegou tarde demais. Grande parte deles já tinham apenas 1 a 2 circulações diárias e havia casos até que eram apenas semanais, como o ramal de Mora. Sendo necessário substituir tudo nesses ramais, dos carris às travessas mas também à própria plataforma, o encerramento caiu como uma bomba mas também como uma inevitabilidade, após décadas sem investimento e onde os descarrilamentos eram diários. O plano de fecho de linhas havia já sido debatido nos anos 50 e depois 60 e 70, ficando selado pelo governo de Bloco Central no início da década, embora adiado por falta de capacidade de acção política, num primeiro momento.

Interessantemente, o ritmo de contracção de funcionários abrandou ligeiramente, terminando a CP a década com 22.250 funcionários. Depois dos custos operacionais terem quadriplicado após 1974, durante esta década subiram apenas 35%. No entanto, os indicadores financeiros que inicialmente recuperaram (para taxas de cobertura de 52%), acabaram por voltar a tombar para 45-46% em 1990 e 1991.

Gráfico retirado do livro “Estudos Ferroviários I – A questão Ferroviária

A década das oportunidades perdidas

Em 1990, mesmo apesar dos cortes na rede e do aumento colossal do investimento, a rede estava ainda ligada às máquinas mas já olhava para o futuro. 

Foi a década dos grandes fluxos de Bruxelas e onde o país assistiu ao debate do que fazer ao eixo Lisboa – Porto, onde a barreira das três horas teimava em não quebrar. Depois de uma opção clara pela alta velocidade, o último governo de Cavaco Silva acabou por preferir a renovação da linha do Norte e a compra de comboios pendulares. Muitos técnicos à época advogaram esta opção porque, além da nova linha, a linha do Norte continuaria sempre a necessitar de renovação, visto que muitos troços estavam em mau estado e porque a pressão urbanística junto às grandes cidades obrigava a aumentar capacidade. A cedência a estes argumentos, que na prática evitaram uma “duplicação” de investimento, foram o primeiro grande erro desta década.

Além da modernização da linha do Norte, foram lançadas as últimas etapas da modernização da linha da Beira Alta, cujo fortíssimo tráfego representava um grande risco para uma linha ainda gerida manualmente e com recurso ao telefone fixo, um grande programa de renovação das linhas nas áreas urbanas e a instalação do eixo Norte-Sul, em Lisboa, atravessando a ponte 25 de Abril.

Foi ainda renovado o chamado itinerário dos granéis, entre Entroncamento e Sines, com electrificação até ao Poceirão e Setúbal, permitindo abranger pela tracção eléctrica mais de 50% do tráfego de mercadorias nacional, pela primeira vez.

Na segunda metade da década era necessário continuar a aposta no material circulante e novos erros foram realizados. No auge das vacas gordas, a CP acabou por ser um raro paradigma de contenção de investimento. Ao invés de novos programas de aquisição de material circulante, a companhia limitou-se a mínimos olímpicos (34 unidades para o Porto e 12 para Lisboa) e lançou em vez disso um vasto programa de remodelações de material circulante – 57 unidades eléctricas fabricadas entre 1971 e 1984, 19 unidades diesel de 1964, 21 unidades diesel de 1954, 10 unidades diesel de via estreita de 1969 e 34 automotoras da linha de Cascais, fabricadas entre 1959 e 1979 (e algumas, com leitos de 1926). Esta opção determinou de imediato que o grosso do parque da CP haveria de ter que ser substituído 15 anos depois, pois era o ciclo de vida calculado para quase todos os comboios. E em quase todos acabou por pecar por excesso…

Institucionalmente, a CP dividiu-se entre CP (operação) e Refer (infraestruturas) em 1997 e em 1999 estreou-se a Fertagus, primeiro concessionário privado desde 1976. O primeiro contrato da Fertagus foi uma “vintage-PPP”, mas a renegociação de 2004 foi reconhecida pelo Tribunal de Contas como extremamente vantajosa, sendo a linha de mais elevada qualidade e fiabilidade de toda a rede e actualmente sem custos para o Estado.

Em 1998, quando o país gastava como nunca em todas as áreas, a CP era forçada a renovar e dar uma segunda (ou terceira) vida aos comboios de Cascais, já reconhecidamente obsoletos e a gritarem por substituição. Um caso infelizmente exemplar.

Euro 2004 e falência do Estado

No início dos anos 2000 puseram-se em marcha acelerada várias renovações e electrificações por causa do Euro 2004. Na linha do Sul, foram realizadas correcções de traçado muito grandes entre Grândola e Torre Vã, ficando por realizar a variante de Alcácer (chumbada por motivos ambientais). O troço da serra algarvia acabou por não ser mexido como previsto, sendo apenas electrificado e automatizada a sinalização, mantendo velocidades de 90-100 km/h. Por fim, os comboios para o Algarve passaram a sair por Lisboa.

Fez-se a electrificação da linha da Beira Baixa (basicamente, esticar catenária e sinalização automática, linha quase toda a 80-90 km/h) e grandes reformas na zona urbana do Porto, com duplicações até Caíde e Braga, várias correcções de traçado, novas estações e apeadeiros e electrificação. O serviço urbano do Porto recebeu entretanto as 34 automotoras encomendadas no final dos anos 90 e o serviço urbano do Porto ganhou por fim a dignidade que há muito ambicionava.

Após o Euro 2004 o país voltou a discutir os planos de alta velocidade. Considerados megalómanos pela esquerda quando Durão Barroso os apresentou, foram depois considerados megalómanos pela direita quando Sócrates os recuperou em 2005. Quanto a mim, uns e outros, foram os únicos exercícios minimamente sustentados para evolução da rede ferroviária e em grande medida apontavam eixos de óbvio interesse, e onde apenas Lisboa – Porto seria exclusivamente para passageiros.

Enquanto os governos acenaram com a alta velocidade, a construção de auto-estradas bateu recordes e os investimentos sempre anunciados nunca foram realmente executados, apesar dos muito caros estudos que foram sendo repetidos até à exaustão. Por fim, apenas a Variante de Alcácer, na linha do Sul, avançou – após reformulação do traçado para minorar os impactos ambientais.

Com a pré-bancarrota do Estado voltou o cenário pós 25 de Abril. Um Estado sem capacidade para investir acabou por utilizar a magra folga criada com os investimentos pré-Euro2004 para sobreviver na maior dificuldade, perante um cenário de quebra generalizada no número de passageiros que vinha desde os anos 70.

Onde estamos agora?

Com a crise, finalmente os défices dos sectores empresariais do Estado passaram a ser vistos sem truques de desorçamentação e o país real noção do que gastava. A CP passou a cobrir bem mais de 50% dos seus custos e a cobrir inclusivamente mais de 90% dos seus custos operacionais.

O grande problema financeiro do sector é a sua dívida. A dívida histórica do sector vem em arrastamento desde os anos 70 e 80, sendo desde então alimentada quer pela incapacidade de a pagar, gerando dívidas crescentes, como por uma continuação da irresponsabilidade estatal, obrigando a empresa a operar serviços públicos sem a devida compensação financeira. As indemnizações compensatórias, que representavam um valor mais ou menos aleatório, nunca cobriram minimamente as necessidades da empresa e foram mesmo eliminadas em 2015 por troca com a contratação de serviço público, que ainda não foi realizada – a CP recebe por isso 0€ pelos comboios não rentáveis que é obrigada a operar.

O investimento está em mínimos de sempre, um cenário muito similar ao de 1980, ficando longíssimo do necessário até para a necessária renovação e manutenção dos equipamentos. O cenário existente na operação não deixa sobre isso nenhuma dúvida.

A rede ferroviária está bastante mais segura depois do lançamento dos programas de instalação de Convel e Rádio Solo-Comboio em 1988, completada com o encerramento da quase totalidade das passagens de nível do país e pela reabilitação de vias feita a partir de 1988 e até 2007, mas o seu estado é já bastante degradado. O investimento anual é bastante inferior a 100 M€, contrastando com alguns picos acima de 200M€ e mesmo 250M€ nos 16 anos entre 1988 e 2004. Se esse período tinha permitido recuperar pouca coisa, o que veio a seguir foi praticamente a crónica de um encerramento anunciado.

Aqui estamos hoje novamente em 1985. Com uma rede a cair aos bocados, insustentável financeiramente, sem serviços contratados nem programas de investimento minimamente ambiciosos em concretização. Para muitas linhas já poderá ser tarde. Para outras, vivem-se patamares de performance típicos dos anos 80 (com excepção da segurança, esse valor ainda não o perdemos totalmente), com as mesmas velocidades e a mesma falta de ambição. O Ferrovias 2020 era um plano originalmente interessante que entretanto, cortado para metade, já praticamente nada inclui de relevante para aumento de competitividade da rede.

Tal como o caos pós-revolução determinou os encerramentos massivos do final dos anos 80, a total ausência de estratégia e investimento pós-2004 arrisca colocar Portugal ainda mais na cauda da União Europeia.

Pode não parecer, mas os nossos parceiros europeus estão a investir praticamente tanto em caminhos de ferro como na revolução industrial. E esta, hein?

Que soluções?

Os caminhos de ferro são um sector de capital intensivo. Como o período pós-revolucionário demonstrou, o aumento por si só dos custos do trabalho não resolve nada no que ao serviço prestado diz respeito e, sendo compensado com diminuição dos custos de capital, é aliás mortal.

Com as pontuais excepções de final dos anos 80 e início dos anos 2000, o investimento em capital no sector ferroviário tem ficado muitíssimo abaixo de praticamente todos os anos entre 1961 e 1973, que coincidiram com os três Planos de Fomento do Estado Novo, não sendo por isso um espanto que a ferrovia portuguesa tenha rapidamente deixado de se aproximar (lentamente) da dos nossos parceiros, para experimentar uma acelerada divergência.

É fundamental perguntar: o que quer o país da ferrovia? Quer ligar todas as populações com mais de 50.000 habitantes? Todas as capitais de distrito? Todos os portos? Todos os aeroportos? Quer transportar passageiros com médias comerciais de 70, 140 ou 250 km/h? Quer promover a indústria pesada e baixar custos logísticos?

Sem estas perguntas e sua resposta não há solução. E é preciso aumentar significativamente a alocação a despesas de capital de partes crescentes do orçamento de Estado. O sector ferroviário tem hoje orçamentos inclusivamente inferiores aos do período da troika, com a agravante de ficarem por executar, por falta de autorização, fatias crescentes desse mesmo orçamento. É uma perfeita loucura e é a receita para o caos que se tem vivido, e que não mais nos largará sem se virar a mesa.

Espanha tem alocado em investimento ferroviário praticamente 0,5% do seu PIB, anualmente, desde 1988, construindo uma rede praticamente toda nova e adquirindo material circulante literalmente às pazadas – tanto que é o que nos safa de colapsos ainda maiores, por terem parques excedentários.

Se Portugal afectar 0,2% do PIB anualmente, muito abaixo por isso de todos os países europeus com redes em vias de desenvolvimento, significa investir anualmente praticamente 400M€ em ferrovia, o que não é nada de significativo num país tão atrasado como o nosso. E seria mais do que os picos de 1989 e 2003, desde logo, dizendo bem do que foi a ambição passada. Se for 0,5% do PIB como Espanha, seriam quase 1000M€/ano, mais do triplo do anterior máximo histórico em democracia, e alinhado com muitos dos países de Leste que, como nós, tinham uma rede ferroviária em profunda decadência. Em cima do esforço orçamental ainda pode existir a ajuda europeia, que permitiria alavancar ainda mais estes números.

Claro que o país está com grandes dificuldades financeiras. Mas se quiser uma rede ferroviária do século XXI, terá de ir buscar esse dinheiro a outros sectores. Ninguém disse que era fácil. Mas não me digam que querem investir em ferrovias quando o Orçamento do Estado nem com o Ferrovias 2020 vai atingir sequer 0,1% do PIB em esforço anual. Areia para os olhos dispenso, da esquerda à direita.