Crise ferroviária ou crise nacional?

Crise ferroviária ou crise nacional?

22/11/2018 0 Por Joao Cunha

Não vou mais atrás para não maçar ninguém. No Governo de Sócrates, de 2005 a 2011, nasceram as maiores promessas de investimento (de sempre?) na ferrovia portuguesa. De tanto anúncio e de tanto gasto público saiu, para este sector, praticamente zero. Depois veio a intervenção externa e o governo de Passos Coelho, que assumiu a incapacidade de investir. Entretanto, com António Costa e o inefável Pedro Marques regressou a fúria dos anúncios e das mil promessas de retoma do investimento, saldando-se até ao momento na maior crise ferroviária da nossa história. Terá isto um fim?

É sempre muito conveniente analisar a política com divisão entre bons e maus, entre políticos intrinsecamente bem intencionados e outros que nascem com o sórdido prazer de fazer mal aos outros. Acredito que qualquer pessoa com mais de 18 anos já tenha abandonado esta forma sectária de ver as coisas e, assim, será bom perceber porque é que, apesar das aparentes boas intenções, não só nada se faz como tudo piora.

A crise ferroviária é, na realidade, uma ampla crise nacional. O país está a perder capacidade de se projetar no futuro, e apenas fatores conjunturais que se registam desde 2014 vão dando uma capa de entusiasmo no nosso país.

O que vemos hoje não dista muito do caldo que se cozinhou até 1983, quando uma nova intervenção externa de ajuda à nossa economia tornou inevitáveis muitos encerramentos e a necessidade de uma lei de reestruturação do setor ferroviário. Mas, contrariamente aquela época, desta vez há não apenas um grande backlog gerado por omissões de manutenção e renovação, como há também um ambiente económico que impedirá a sua reversão.

O Estado Social tal como o concebemos foi fundado numa época de explosão demográfica pós-Guerra e com uma esperança média de vida que não ultrapassava muito os 65 anos. Hoje em dia, não estamos já distantes de existir uma pessoa activa por cada pessoa reformada e a esperança média de vida ultrapassa os 80 anos. As fundações estão por isso em abalo progressivo. Por toda a Europa, a maior parte dos Estados tem reagido a isto com um misto de reorientação do Estado Social e limitação nas despesas de capital, onde entram as despesas fundamentais com infraestruturas ou reparaçõs de material circulante. Alguns outros, como Portugal, tem mantido no essencial a mesma estrutura redistributiva, colocando praticamente todo o esforço do lado das infraestruturas, contraindo despesas de capital para aguentar o aumento permanente de outros encargos.

A PORDATA permite tirar algumas fotografias importantes para se perceber isso:

Como se percebe, a despesa do Estado aumentou bastante em % do PIB, razão pela qual temos uma das maiores cargas fiscais do mundo civilizado e, claramente, bem superior ao passado. Dentro dessa crescente despesa, as despesas de investimento e capital têm apresentado uma clara tendência de queda, mesmo considerando os picos de 2009 e 2010 que foram na realidade a revelação de despesas desorçamentadas anteriormente.

Ou seja, o Estado gasta cada vez mais dinheiro, cobra cada vez mais impostos, mas sobra-lhe cada vez menos para coisas como infraestruturas: seja para as construir, mas mesmo para as manter. É um problema que toda a Europa enfrenta e que pode ser origem de muitos encerramentos futuros. Por cá, agrava-se por existir também um aumento permanente das despesas correntes de funcionamento.

Deste modo, é previsível que o garrote se mantenha por muitos anos, especialmente se o Estado não reformar as suas funções nem alterar a sua política redistributiva. Actualmente prioriza as pessoas reformadas e os seus funcionários, mas na prática fica bem visível que se esforça cada vez menos para amparar quem precisa de transportes públicos ou quem precisa de habitação barata mas não tem forma de chegar ao local de trabalho. E isto, claro, acaba por prejudicar também os seus funcionários, como se vê na exaustão imensa dos ferroviários na atualidade.

Como o governo atual prova, é irreal pensar que se pode simplesmente resolver a equação aumentando o gasto público, especialmente sem compensação por impostos. A dívida pública do país, contraída única e exclusivamente por opções soberanas de Portugal e pelas quais respondemos solidariamente tenhamos ou não votado por elas, é um incentivo suficiente para não abrandar a consolidação orçamental:

Num quadro em que temos imensas contas do passado para pagar, em que o potencial de tributação adicional é já reduzido e que, ficando tudo como está, o mero efeito demográfico aumentará ainda mais os gastos relacionados com prestações sociais, é evidente que será impossível a este Governo ou a qualquer outro alguma vez recuperar os caminhos de ferro portugueses e, talvez, até evitar novos encerramentos. A minha maior queixa é isto não ser assumido, para que a população em eleições, de forma mais consciente, possa escolher eventuais caminhos alternativos.

Uma coisa é absolutamente certa: se não quisermos mexer nas grandes despesas do Estado – as correntes – nenhum governante poderá assegurar mais do que umas pequenas renovações aqui e ali, sem nada de estrutural e realmente sem nenhuma vertente transformacional. Se o dinheiro tem sido pouco para o setor, a única tendência visível com o quadro atual é diminuir ainda mais.

Como última nota, o tema das infraestruturas e transportes relacionado com a pressão demográfica nas despesas públicas é recorrente na literatura económica e da engenharia e, podendo ser mais crítico em Portugal, é um problema para quase todos os países ocidentais. Muito do que foi construído nos últimos 100 anos poderá deixar de funcionar por não ser bem mantido. O tema é de facto muito importante e definidor das condições de vida das gerações vindouras.

Na atualidade há elementos comparáveis com o início dos anos 80 mas com riscos distintos, porque a dependência de rearranjos noutras áreas é hoje maior e será, no futuro ainda mais fundamental. E são, sobretudo, rearranjos necessários em áreas onde qualquer mexida é tradicionalmente impopular e que afeta vastas franjas de eleitorado subsidiário.

Quando os mínimos olímpicos do período da Troika parecem hoje, à distância, frugais repastos feudais, uma reflexão mais estrutural impõe-se. Podemos preferir continuar a anunciar remendos minimalistas ou a protestar pela falta de soluções, mas sem olharmos também para a vertente mais estrutural do país parece claro que os caminhos de ferro serão a primeira coisa a ser abandonada em definitivo.