Menos projectos, maiores projectos

Menos projectos, maiores projectos

15/07/2019 0 Por Joao Cunha

Nos primeiros anos da ditadura franquista, Espanha actuou em vários eixos que considerava de insuficiente performance – tinham demasiadas curvas, demasiadas rampas ou traçados simplesmente pouco directos. Foi assim que nasceu o “Directo da Galiza”, com mil e um túneis entre Zamora e Ourense, ali bem perto de Bragança, o “Directo de Valencia” ou o “Directo de Burgos”, todos apresentando traçados mais rectilíneos e de rampas mais moderadas do que as velhas linhas históricas do século XIX.

Depois da febre dos directos, a ferrovia espanhola melhorou antes de voltar a uma decadência muito portuguesa, que só os incríveis investimentos dos últimos 30 anos transformaram.

Serve tudo isto para dizer que a rede portuguesa está para trás da ditadura franquista. Nos últimos trinta anos o número de projectos implementados na rede portuguesa é impressionante e, no entanto, a realidade resultante é uma desilusão profunda que nos coloca em competição apenas com a Albânia e, de forma transitória, com Roménia e Bulgária.

Já me repeti vezes sem conta neste assunto mas não me cansarei de repetir o que é para mim uma evidência de décadas, tantas vezes reflectida em frustrados epílogos das carreiras de alguns dos mais afamados engenheiros da nossa rede – actualizar sistemas de segurança e de tracção, que no fundo foi o realizado em 90% das intervenções dos últimos 30 anos, não é garante de maior competitividade ou de maior interesse social do caminho de ferro.

Devíamos procurar mais projectos estruturantes e menos projectos paliativos. Acabámos de electrificar a linha do Minho, via férrea que atravessa a que será porventura a única região razoavelmente jovem do país, de forte densidade populacional e dinamismo económico. Os comboios rápidos não ganham tempo, pois circulam à mesma velocidade que em tracção diesel. Os regionais ganham 5 minutos, fruto das melhores acelerações conseguidas na tracção eléctrica. Mas é tudo o que temos para apresentar. Porto e Valença, a 130 quilómetros de distância, ficarão ligados em pouco menos de duas horas – o tempo que demora qualquer pessoa a ir do Porto às imediações de Santiago de Compostela por via rodoviária. Por muito que se apele a consciência ambiental, a falha de mercado aqui não é a livre escolha das pessoas – é a falta de actualidade do meio de transporte mais amigo do ambiente.

A escolha mais decisiva que a política pode fazer nos próximos anos é se quer ter mais ou menos linhas nos powerpoints. O Ferrovias 2020, que até incluía inicialmente a nova linha de Sines, a nova linha de Évora e a nova Beira Alta, não fugia no entanto à tentação de dizer que se ia intervir em quase metade da rede. Ora esse é um KPI que interessa praticamente nada, e a execução em curso prova-o de forma particularmente cruel. Duas das novas linhas caíram e quase tudo o executado ou previsto nas restantes linhas não acrescenta nada – lá acrescenta uns fios eléctricos para meia dúzia de comboios ao dia continuarem a fazer tempos de viagem dignos de 1950.

Assim, será mais importante propor projectos que mudem a realidade, verdadeiros “game changers”, do que insistir nos mesmos traçados até à exaustão.

Se em vez de electrificar a linha do Oeste e a do Algarve se fizesse só a nova linha Malveira / Torres Vedras – Lisboa, a rede no seu conjunto atrairia muito mais passageiros e carga, que sairiam de outros modos mais poluentes e energeticamente menos eficientes. Para o Algarve a solução poderia passar, nesta linha de raciocínio, por material circulante mais moderno, eventualmente até com novos modos de tracção.

Se em vez de olhar para a electrificação da linha de Casa Branca a Beja e do Marco à Régua se olhasse apenas para a realização de uma nova linha Évora – Beja, com aproveitamento de parte do traçado actual, no seu conjunto a rede beneficiaria muito mais a coesão do país, abriria portas a mais gente e beneficiaria muito mais as empresas e o potencial de atracção de investimento. Do Marco à Régua, onde será impossível melhorar o traçado, também se poderia considerar soluções diferentes, eventualmente com baterias ou electrificação parcial, a suficiente para recarregar os comboios.

Precisamos de mais projectos que façam a diferença. Que sejam mais ambiciosos, de maior amplitude, mas que sejam aquilo que meras insistências em soluções históricas não conseguiram ser – os atributos para redesenhar o papel dos caminhos de ferro neste século de emergência climática.

Infelizmente pelo caminho existirão muitos argumentos emocionais e muita tentação para aumentar o número de fitas para cortar, mas o certo é que se a aposta na ferrovia é para valer, a solução é dar-lhe a capacidade de ser competitiva, não é penalizar a utilização de soluções alternativas. Essa ideia, que foi quase dominante na Europa a certa altura, mostrou ser um desastre para os caminhos de ferro, que promoveram menos a sua própria melhoria e se distanciaram dramaticamente do interesse das pessoas e da sociedade, como um todo.

À beira da liberalização, a pergunta mais óbvia que se pode fazer é porque é que num país com uma frente litoral tão apetecível e algumas ligações complementares de densidade potencial elevada, não aparece um único interessado em vir para cá concorrer. Terão piedade da CP? A resposta parece-me ser outra. Para a encarar é precisa coragem e a audácia que faltou até aqui, mas é disso que se fazem as referências de que um dia falarão os livros de história. Não é por acaso que a rede portuguesa não gera figuras com relevo histórico há mais de cinquenta anos.