O Caderno de Encargos para a próxima legislatura

O Caderno de Encargos para a próxima legislatura

08/10/2019 1 Por Joao Cunha

O novo governo que entrar em funções enfrenta os mais decisivos anos deste século para o futuro da nossa rede ferroviária. Depois dos mínimos históricos atingidos na legislatura que agora termina, mais do que nunca é precisa acção de grande escala para começar a dar a volta.

Enquanto aguardarmos para perceber o que acontecerá no ministério, aqui fica uma breve abordagem.

Ferrovias 2020

É fundamental levantar todas as restrições existentes, muitas das quais ligadas a orçamentos manifestamente feitos por baixo e que teimam em deixar desertos os concursos abertos para realização das empreitadas. E tem de ser feito rapidamente, pois 2023 é já ali e nessa altura caducam os financiamentos comunitários.

Apesar do aperto, há duas intervenções que deviam merecer imediata revisão e adaptação a uma visão de futuro:

  • 100M€ para a linha do Oeste – deviam ser focados no troço Torres Vedras – Louriçal, onde correcções pontuais são suficientes, em vez de Caldas – Lisboa. Entre Torres Vedras e Lisboa o que se impõe é uma linha nova, investir da forma como será feito será improdutivo;
  • 150M€ para a linha de Sines – devíamo-nos focar em avançar já com a execução da nova linha de Sines, mesmo que este orçamento não seja suficiente para a completar a mais do que 70 ou 75%. No próximo QCA seria realizado o resto. Investir na actual linha, sem mudar o traçado, é também muito improdutivo.

Plano Ferroviário Nacional

É fundamental Portugal fazer o que fez Espanha no governo de Aznar: apontar a uma meta de desenvolvimento da rede, não necessariamente só para os 5-10 anos que se seguem, mas bem mais para a frente.

O que queremos fazer com uma rede ferroviária? Que objectivos estratégicos e territoriais queremos atingir? Que objectivos económicos e financeiros? Que objectivos ambientais?

Só depois de determinadas as grandes linhas orientadoras se deve partir para identificar todas as acções a tomar.

Por exemplo, é muito mais importante definir primeiro um objectivo como: ligar todas as capitais de distrito a Lisboa e/ou Porto até 2h30 de viagem. Um objectivo destes permitirá desenhar o plano que permita cumprir o objectivo geral, por oposição ao que habitualmente é feito, que é o desenho de intervenções que acabam por se revelar improdutivas ou desligadas da visão global.

A meu ver, existem condições para elencar os grandes objectivos políticos até ao primeiro trimestre de 2020, iniciando-se uma fase de esboço dos projectos necessários para corresponder aos desejos ao longo desse ano. A priorização será feita a seguir, pois se o Plano estiver bem feito representará um investimento incompatível com uma execução em menos de 10-15 anos. E não tem mal nenhum.

Operação

É fundamental melhorar a contratação do serviço público (que, já agora, continua por entrar em vigor). Definir exactamente por eixo e por tipo de serviço os padrões de qualidade a observar, à semelhança da descrição exaustiva que consta no contrato de concessão da Fertagus, da ligação Lisboa – Setúbal.

No sector público, é crítico dar autonomia de gestão à CP em paralelo com a limpeza da dívida histórica, assente em critérios de gestão monitorizáveis e alinhados com as obrigações de serviço público contratados à empresa. Dotar a empresa de meios financeiros adequados aos serviços obrigatórios é fundamental.

Deve ser a CP, com uma capacidade económica restaurada e com uma gestão dimensionada aos objectivos, a traçar um plano de investimento em material circulante. A aquisição de material circulante faz parte do que são investimentos normais de qualquer empresa de transporte e, portanto, não existe qualquer razão para serem decisões emanadas de fora da empresa. É a empresa, com a capacidade económica normalizada, que deve procurar os investimentos necessários para manter e melhorar os seus níveis de serviço e competitividade.

É absolutamente claro que a empresa precisa de estabilidade e que o regresso do senso comum à gestão da empresa, obtido finalmente durante este ano que está quase a acabar, deve ter a oportunidade de pensar e estruturar as operações da empresa num prazo alargado, para de facto conseguir dar a volta à companhia. E é absolutamente claro que depois da fase actual de tapar as feridas com pensos, o conselho de administração deve começar a pensar num plano de aquisição de novo material circulante extenso, capaz de melhorar as capacidades da empresa em todos os segmentos da sua operação.

Orçamento

Nada vai acontecer de relevante sem que o país aloque em definitivo uma percentagem expressiva do seu orçamento de Estado a investimento em ferrovias – sobretudo nas infraestruturas. Não pode mais ser a mola de amortecimento da execução orçamental, o estado a que chegámos é verdadeiramente crítico.

Sem a alocação expressiva de capital a este sector, num valor nunca inferior a 300-400 milhões de Euros/ano para investimentos, arrisco dizer que os mínimos históricos atingidos em 2018 pouco serão ultrapassados. E concluo, mais facilmente, que o futuro do sector será definitivamente sombrio, numa tendência minguante cada vez mais difícil de inverter e que pode ser irreversível.

Era bom que entendêssemos que o dinheiro que eventualmente o país tem de poupar, tem de o fazer noutro tipo de despesas e noutros ministérios. No que aos comboios diz respeito, o país já poupou muitos milhares de milhões de Euros nas últimas duas décadas – não dá mais.