Enterre-se o Metrobus do Mondego

Enterre-se o Metrobus do Mondego

10 Junho, 2020 11 Por Joao Cunha

O metro do Mondego é um filho dos anos 1990, quando aos transportes se pediam fórmulas para valorizar a promoção imobiliária, mais do que a transportar pessoas. Em Lisboa há muito que as linhas de Metro apontavam a zonas desérticas mais do que a zonas povoadas (aconselho a verem o que era a Lisboa do Colégio Militar antes do Metro) e no Porto decidiu-se trocar o comboio suburbano pelo Metro em direcção à Póvoa ou à Trofa (onde depois nunca chegou).

O metro do Mondego era a solução faraónica para dar outro elã ao único corredor facilmente apto à migração – o ramal da Lousã. Esta é outra característica do desenvolvimento destes sistemas nesta fase – o de procurarem substituir a ferrovia pesada, já implantada, ao invés de servirem a eixos de mobilidade sem qualquer suporte de meios de alta capacidade. O motivo? O custo de implantação possibilitava a promessa do Metro sem significar somas exorbitantes.

Vinte e cinco anos volvidos, a história é bem conhecida. A Sociedade do Metro do Mondego pagou administradores, alguns projectos e bares de alterne. Coimbra nunca viu nem o metro em direcção à Lousã nem uma solução de mobilidade mais eficaz no centro da cidade, onde de facto faria falta.

Ao fim de vinte e cinco anos, o decrépito e falido regime nacional entregam a Coimbra a côdea: já não falamos de um comboio renovado nem de um metro espampanante, mas falamos de uns autocarros a circularem no antigo canal ferroviário, em via única e obrigados a cruzamentos em estações. Sendo muito o ridículo, a Infraestruturas de Portugal e o Governo arranjaram uns autocarros “inteligentes”, guiados com auxílio de guias ao longo do trajecto, com sinalização pesada de tipo ferroviário e, provavelmente eléctricos.

A parafernália de invenções continua, com as rotundas instaladas ao longo do percurso para permitir a inversão dos autocarros e a promessa de manter este sistema “espectacular” também intra-muros, em Coimbra.

O que não se disfarça é que o resultado de tudo isto é a oferta de um serviço em condições de conforto muito inferiores – não é preciso citar as diferenças dinâmicas de viajar a bordo de um autocarro ou de um comboio. Bastante pior, o regime oferece aquela que foi em tempos a terceira cidade do país um serviço para o que também foi em tempos o seu dormitório chique cujos tempos de viagem da periferia ao centro superam alguns dos piores tempos que as velhas e cansadas automotoras diesel faziam nas últimas décadas de vida do ramal da Lousã. Que semelhante feito mereça honras de apresentação pública e propaganda, em vez de envergonhados pedidos de desculpa, é a melhor prova da decadência que se instalou no país.

O ridículo mapa e serviço que o regime apresentou com contentamento

A verdadeira cereja no topo do bolo é a vontade da desactivação da estação de Coimbra-A onde chegam, sem transbordos, comboios de proximidade da Figueira da Foz, do Entroncamento, da Beira Alta e de Aveiro, permitindo ainda aos passageiros dos rápidos desembarcados em Coimbra-B estarem a três minutos da Baixa de Coimbra. Uma agressão gratuita da Imobiliária de Almada, portanto a teórica gestora de infraestruturas, com cobertura governamental, sob o pretexto de poupar na implantação dos autocarros da Lousã, usando também aqui o canal ferroviário. A dita Imobiliária, além de apresentar um projecto de mobilidade que só tem paralelo nalgumas das práticas terceiro-mundistas do Brasil, ainda anuncia saldos em cima dos saldos, evitando a implantação do corredor nas largas ruas que de Coimbra-A vão para Coimbra-B, aproveitando para poupar uns trocos em manutenção ferroviária e utilizando o mais simples canal ferroviário. É obra!

Apesar da celeridade da Infraestruturas de Portugal na revisão integral deste projecto e do seu lançamento – quão útil teria sido tanta “vontade” ao serviço do Ferrovia 2020 – o projecto não está ainda no ponto de não retorno e, se existir vontade política, o país pode recuperar não apenas o serviço ferroviário como, muito mais do que isso, todo o potencial que ali dormitava para servir a mobilidade de forma mais sustentável e competitiva. Afinal de contas, não é por isso que se luta nos debates públicos?

Chega de tanto erro!

Não podemos mais assistir a tanto erro junto sem mobilização e sem denunciar o que são erros históricos inadmissíveis em 2020. Não há qualquer pretexto que justifique que o Estado, que tem poupado para lá do razoável no investimento público, possa querer poupar meia dúzia de milhões de Euros com uma região como a de Coimbra, crucial no desenvolvimento de toda a região Centro e, por arrasto, de todo o país.

Não é sequer já tempo de debater os detalhes e as preciosidades dos planos, encantos burocráticos desenvolvidos pelos sedutores de autarcas do costume e que impedem sistematicamente, com estes truques, que se debatam as suas piores intenções e a “bigger picture”.

Coimbra possui um único constrangimento notável para o aproveitamento do ramal da Lousã com a articulação que é desejável com o resto da rede ferroviária, sendo esse o troço entre Coimbra-A e Coimbra-Parque, pela Avenida Emídio Navarro. Estes 800 metros de conflito são o Santo Graal de todas as justificações para um crasso erro de mobilidade e para despromover, uma vez mais, o potencial do nosso país.

O túnel de Coimbra

Todo o tema está, portanto, focado no custo de um possível túnel ferroviário que pudesse desnivelar o atravessamento ferroviário entre as duas estações anteriormente citadas. Em 800 metros.

Duas opções são possíveis:

  • Manter o atravessamento de nível;
  • Construir o dito túnel.

Desengane-se quem pense que a primeira destas opções é impensável. Na realidade, meios pesados no meio de avenidas não é algo desconhecido, nem sequer algo que se quisesse evitar desde logo na origem do Metro do Mondego, ou visível no Metro do Porto.

Por outro lado, não faltam exemplos em cidades de primeira linha como Coire, na Suíça, onde os comboios circulam a cada meia hora, em cada sentido, por quase dois quilómetros das principais ruas e avenidas da cidade, em linhas electrificadas em alta tensão (15.000V) e por onde passam inclusivamente pesados comboios de mercadorias.

Em Chur, Suíça, uma linha electrificada a alta tensão e com comboios de mercadorias circula pelo meio da cidade

Por isso, e com o devido ajuste do traçado para o desviar das árvores da avenida, é perfeitamente viável comportar um curto troço à superfície, electrificado e em via única, para assegurar a ligação do ramal da Lousã à linha do Norte, dando natural sequência aos serviços e melhorando dramaticamente o nível de oferta à população. Este conflito não é em nada diferente dos que promovemos, de forma eficiente e normalizada, com sistemas como os do Metro do Porto ou do Sul do Tejo.

No caso disto ser considerado intolerável pelas mentes possivelmente mais limitadas que por cá existem, então a opção tem de ser o túnel. Ao mesmo tempo que escrevo estas linhas, está a terminar em Espanha a construção de um túnel que cobre uma distância mais de duas vezes superior, para o desnivelamento da ligação de alta velocidade no atravessamento de Leon, comportando uma estação subterrânea. A obra apresenta um custo de 50 milhões, com geometria de traçado para 160 km/h, muito mais do que o necessário para o caso de Coimbra. Falamos de quanto no caso de Coimbra? 20 ou 30 milhões? Estamos a condenar toda uma região e uma das maiores cidades portuguesas porque o Estado que reserva 1.200 milhões para a TAP e 850 para o Novo Banco não quer gastar 30 milhões? Quando uma comparação destas é tão demasiadamente agressora, a eventual demagogia da comparação reside apenas em quem nega semelhante investimento de forma totalmente insustentada.

O Ramal da Lousã electrificado

O ramal da Lousã, com 35 quilómetros, estava obsoleto quando encerrou. Não electrificado e sem sinalização – vigorava o chamado Regime de Exploração Simplificada, em que o revisor à chegada a uma estação ligava ao regulador a perguntar se o comboio podia avançar para a estação seguinte.

O decrépito serviço que existia, assente numa linha abandonada à sua sorte, não pode ser desculpa. Mesmo esse tinha performance e conforto superior ao novo Metrobus…

Com as velhas e cansadas automotoras Allan – que, chegadas em 1954, eram desde então consideradas submotorizadas, o que aliás motivou que a CP nunca tivesse pago a totalidade da encomenda à casa holandesa por incumprimento de requisitos – realizavam o percurso com tempos de viagem entre 45 minutos e uma hora. No pior dos casos, portanto, em tempos similares aos prometidos pelo Metrobus!

Tomando como exemplo a aceleração típica das UTE 2240 que a CP tem ao serviço dos regionais de linhas electrificadas ou dos comboios suburbanos da linha do Sado, é perfeitamente viável acreditar num serviço pára-em-todas em apenas 35 a 40 minutos, entre Serpins e Coimbra-Parque, certamente menos para os serviços mais acelerados de reforço das horas de ponta. Além das capacidades de tracção, a instalação de um sistema de sinalização moderno, como o que se quer instalar para o Metrobus, diminuiria dramaticamente a demora nas estações e aumentaria a capacidade, permitindo a operação de mais serviços mesmo sem acrescentar estações de cruzamento por comparação às que existiam.

O trajecto Serpins – Coimbra-B poderia ser efectuado em 40 minutos, com paragem em todas as estações, contra mais de uma hora na solução de Metrobus!

Quanto a custos? 50 a 75M€, para reposição da via, instalação de catenária e sinalização – menos do que o custo do Metrobus, que obrigará a aquisição de veículos (necessidade não existente na ferrovia) e à adaptação das várias obras de arte do ramal para a circulação destes veículos, nomeadamente com adaptação dos tabuleiros das pontes.

Uma verdadeira malha regional na região Centro

Sem o ramal da Lousã, Coimbra perderá a derradeira oportunidade de retomar o comboio do desenvolvimento, desaproveitando um eixo vital para estabelecer uma verdadeira malha regional de mobilidade de alto padrão, essencial para estruturar o seu desenvolvimento social, humano e económico, numa região com muita dificuldade para atrair recursos humanos e empresas.

Coimbra-B podia ser a estação mais relevante a seguir a Lisboa e Porto, com um papel na malha regional possivelmente tão importante como a própria estação de Campanhã, que é de todas as estações portuguesas aquela que tem um papel mais estrutural para o serviço de curtas e médias distâncias no nosso país.

De Coimbra-B, já hoje se pode chegar até Pombal e Entroncamento, para Sul, à Figueira da Foz, a Oeste, a Aveiro, a Norte, e a Santa Comba Dão e Mangualde, a Nordeste. Com a reintegração plena do ramal da Lousã, Coimbra-B podia ser a plataforma para ver passar os comboios Serpins – Figueira da Foz ou Serpins – Aveiro, comboios aptos às deslocações de e para Coimbra e rompendo uma série de transbordos frequentes para passageiros realizando deslocações ao longo deste eixo e sem necessitarem de se apear em Coimbra.

De igual modo, podia ser explorada de outra forma o acesso ao Luso, Mortágua e Santa Comba, com alguns comboios articulados em Coimbra com outros serviços (Figueira da Foz, Pombal, Serpins) e que pudessem puxar pelo desencravamento da região e pela liderança regional da cidade de Coimbra.

Com o ramal da Lousã reintegrado e a fornecer escala ao sistema, ganha ainda muita força a possibilidade de reactivar parte do antigo ramal da Figueira da Foz, entre a Pampilhosa e Cantanhede, uma distância de apenas 15 quilómetros, em terreno muito favorável e cujo custo de reimplantação, electrificada, seria bastante baixo – em torno dos 20 a 30 milhões de Euros.

Coimbra seria o coração de uma estrela de mobilidade essencial para servir a heterogeneidade e dispersão populacional que são um grande desafio específico da região Centro, promovendo ao mesmo tempo amplitude geográfica e ganhos de escala pela plena articulação dos vários ramos – a composição de uma verdadeira rede, uma singela palavra que no caso ferroviário significa ganhos de produtividade que tornam o custo marginal do transporte baixíssimo.

Tudo isto com tempos de viagem imbatíveis para deslocações pendulares, mesmo considerando serviços a parar em todas as estações (servindo capilarmente o território):

  • Figueira da Foz – Coimbra em 50 minutos, ou Figueira da Foz – Lousã em 1h20
  • Cantanhede – Coimbra em 25 minutos, ou Cantanhede – Lousã em 55 minutos
  • Pombal – Coimbra em 45 minutos, ou Pombal – Cantanhede em 1h10
  • Aveiro – Coimbra em 55 minutos ou Aveiro – Lousã em 1h25
  • Santa Comba Dão – Coimbra em 50 minutos ou Santa Comba Dão – Figueira da Foz em 1h40
Exemplo, a laranja, do que podia ser a malha regional ferroviária de Coimbra

No eixo Aveiro – Pombal é ainda possível (recomendável, até) que a CP venha a trocar as composições actuais (limitadas a 120 km/h) por composições aptas a 160 km/h, já que o actual reforço da frota eléctrica e de carruagens pode vir a permiti-lo, ganhando assim cerca cinco a dez minutos em cada troço. Estas composições podem depois servir qualquer outro dos ramos da estrela de Coimbra, mesmo que aí sem ganhos adicionais face ao material hoje em dia utilizado.

A pergunta que as populações locais devem fazer é se aceitam os 100 milhões de esmola por um transporte coxo como o Metrobus, ou se exigem os 100 a 150 milhões necessários para estruturar os ramos de mobilidade em falta para que a sua região consiga, por fim, reagir ao estado abúlico em que dorme há décadas, motivando perda de competitividade e vendo passar o comboio da modernidade por outras paragens.

Na cidade que fundou a academia em Portugal, é expectável que o país tome opções bem fundamentadas em vez de arranjos político-imobiliários injustificados. Não é tarde demais para reverter o descalabro de políticas públicas que a simples adopção do Metrobus significará, com amplificação por largas décadas e pondo fim, definitivo, a muito do potencial que existe na região. E que se organize, com a decência e utilidade que se necessita, um serviço de autocarros eléctricos dentro da cidade de Coimbra, para rebater na dinâmica rede ferroviária a organizar.

Eu bem sei que estamos já muito adiantados no processo, com procedimentos de contratação inclusivamente em curso. Mas não actuar enquanto ainda é tempo significará assinar por baixo desta solução. Nem eventual tempo perdido deve servir de justificação – mesmo cancelando procedimentos de contratação em curso, não existe nenhum motivo para que repor o percurso Coimbra Parque – Serpins não se possa fazer inclusivamente mais cedo do que os prazos actualmente previstos para o Metrobus. Bastante mais cedo, até.

Enterre-se o Metrobus, enterre-se a má política e enterre-se a péssima gestão de infraestruturas deste país. Chega de tanto disparante.