O problema da bitola ferroviária em Portugal

O problema da bitola ferroviária em Portugal

27 Janeiro, 2023 11 Por Joao Cunha

Tenho, desde há muitos anos, uma estupefacção: o país que nunca discutiu caminhos de ferro e que nunca lutou por um quilómetro de linhas mais, anima-se, excita-se e até se exalta para falar da bitola.

O tema é tão interessante como aborrecido, e tem uma expressão tão exagerada face ao muito que há para discutir e fazer, que apesar de ser o mediaticamente mais interessante poucas palavras me mereceu ao longo do tempo. Dada a insistência de vários grupos em Portugal neste tema, publico a minha visão sobre o “problema da bitola”, esse grande drama de 233 milímetros que continua a superar em minutos de debate toda a discussão somada de quaisquer outros pontos sobre caminhos de ferro no nosso país.

Um problema de perspectiva

A bitola é um daqueles problemas, talvez pouco frequentes, que analisado de um ponto de vista conceptual ou analisado de um ponto de vista prático retorna resultados muito distintos. O acesso mediático tem estado sobretudo garantido a analistas conceptuais, raramente se encontrando uma pegada forte de operações e sua gestão nestes fóruns.

Como alguém com algum background académico em áreas relacionadas, e um interesse pessoal que me leva a estar normalmente actualizado na produção científica destas áreas, entendo totalmente o interesse de manter os conceitos arrumados e na linha da frente das discussões.

… mas … se há problema em que a perspectiva mais pragmática está muito distante da conceptual, é na bitola ferroviária!

Como tento explicar no resto do artigo, uma eventual migração mais ou menos massiva da bitola ferroviária em Portugal (ou Espanha, ou Finlândia) é uma disrupção potencialmente catastrófica para a performance e competitividade do sistema ferroviário durante muitos anos, com as poucas opções mitigadoras a representarem um custo de investimento fora de escala (mesmo para o meio ferroviário) e a requererem uma coordenação técnica que é, fundamentalmente, utópica.

Como alguém que nasceu profissionalmente na gestão de operações, e que ainda antes disso já respirava operação ferroviária no local onde a magia acontece, acho que estou bastante à vontade para defender a perspectiva pragmática como a que desempata claramente o tema da bitola.

A chave no problema da bitola não é fazer prevalecer a perspectiva conceptual, mas sim criar condições para que as evoluções práticas não coloquem em causa alinhamentos futuros com o óptimo conceptual – que é uma bitola igual para todos os países e casos de uso.

Em resumo

Portugal não tem nem terá nenhum problema de competitividade ou de isolamento pelo facto de manter bitola ibérica.

De forma bastante simples, não existem quaisquer planos para que no futuro próximo ou distante existam conexões ferroviárias em bitola europeia a chegar às fronteiras portuguesas. É falso que Espanha tenha um plano de migração total de bitola – já teve nos idos anos 90, rapidamente cancelado precisamente por choque com a realidade prática. É um tema que Portugal aborda com 30 anos de atraso, em muitos grupos sem aproveitar as lições aprendidas em Espanha.

Neste caso, qualquer implementação de bitola europeia dentro de Portugal representará uma ilha operacional que assim se manterá por muitos anos, complicando desnecessariamente a operação ferroviária (necessitando de veículos específicos, na melhor das hipóteses) ou as infraestruturas (motivando convivência de bitolas em simultâneo, um pesadelo de gestão).

Quando se iniciar uma alteração de bitola, não nos podemos esquecer das alterações necessárias para o tráfego de mercadorias – desde a mais moderna locomotiva, ao mais esquecido e enferrujado vagão, todo, mas absolutamente todo o material circulante utilizado terá de migrar de bitola. Ainda mais complicado, absolutamente toda a infraestrutura também – e os comboios de mercadorias usam muitas infraestruturas – linhas gerais, linhas para resguardo, estações de mercadorias, triagens de mercadorias, terminais ferroviários, terminais privados, ramais industriais… todas as linhas onde existir possibilidade de parquear algum vagão para possibilitar as operações terão de ser migradas. No material ou na infraestrutura, qualquer migração parcial fará explodir, como se de uma exponencial se tratasse, o número de transbordos e ruturas de cargas – esta disrupção tem potencial para aniquilar boa parte do tráfego de mercadorias que existe e do que podia existir entre Portugal e Espanha.

Ora, entre Portugal e Espanha está a maior utilidade do transporte ferroviário de mercadorias para o nosso país, sendo já uma minoria os volumes de mercadorias que de Portugal seguem ou seguirão por via terrestre para lá dos Pirinéus. A ideia de uma migração parcial da rede para servir estes tráfegos, terá o condão de atirar a grande parte do potencial de tráfego para uma situação de inviabilidade pura e simples. Uma migração total tem desafios económicos e técnicos faraónicos.

Não por acaso, os operadores quando consultados se manifestam a favor da manutenção da bitola, mesmo que tal implique manter custos de transbordo nas fronteiras pirinaicas. Não há muitas dúvidas de qual é o mal menor, e na realidade não há dúvidas neste ponto há muitos anos.

A amplitude financeira de intervir por inteiro na rede e no material circulante excede várias vezes o investimento total necessário para expandir a rede ferroviária em linha com o Plano Ferroviário Nacional já apresentado, pelo que numa lógica de custo de oportunidade a oposição é entre gastar um valor X para integrar mais 500 a 800 quilómetros na rede ferroviária nacional ou gastar 4X para rebitolar a rede existente, sem qualquer expansão.

O equilíbrio fundamental nesta questão é fácil de obter e já está alcançado. Do ponto de vista da infraestrutura, garantir que todos os eixos novos e em renovação são dotados de travessas ditas polivalentes, com furação para posições distintas dos carris, que permitam a sua fácil aproximação quando, um dia, puder ser viável remover a bitola ibérica para aderir à europeia.

Do lado do material circulante, para além do material novo estar preparado para uma migração mais fácil (por exemplo, trocando apenas os rodados, sem mais), o transporte de passageiros já tem soluções muito robustas e de vários fabricantes distintos para migrar bitola em andamento, o que pode permitir a um comboio começar numa bitola e terminar noutra. Esta solução deve ser a preferida para tráfegos marginais (minoria), para simplificar a operação do que sejam os fluxos principais da rede. Já hoje, nada relacionado com a bitola impede que exista um comboio que ligue Lisboa a Paris, sem parar.

Nas mercadorias, a solução é também relativamente trivial. Além de já existirem eixos telescópicos há mais de 50 anos, existe já testada uma solução mais robusta e polivalente – os eixos OGI, de Espanha – que podem permitir equipar frotas de vagões destinadas a tráfego além-Pirinéus (não compensará nunca equipar todos os vagões desta forma, dado que a maioria do tráfego será sempre dentro da Península).

É preciso ainda referir que Espanha só está a avançar com migração de bitola no corredor mediterrâneo, entre França e Algeciras, dada a natureza do sistema ferroviário que ao longo desse eixo funciona bastante como um regime quase fechado. Todos os eixos radiais que de alguma forma contactam com essa linha terminam na costa, sem necessidade de por ela continuarem, o que transforma o eixo ao longo da costa do mediterrâneo num sistema relativamente fechado e mais fácil de migrar. É hoje claro para Espanha que este será o plano mais ambicioso das próximas três décadas, sem previsão de sucedâneos ao dia de hoje.

Em suma, manter a bitola ibérica é a decisão acertada, como é acertada a decisão de ir preparando todas as linhas para uma eventual migração facilitada, como é acertada a decisão de nunca realizar migrações sem que tal se justifique nas conexões com Espanha. Se o ideal conceptual pode apontar noutro caminho, a verdade é que a mais básica experiência ferroviária desfaz qualquer hipotética indecisão a favor da opção escolhida em Portugal aos dias de hoje.

O argumento espanhol – a migração de bitola

Um dos famosos argumentos para defender a imediata aposta na bitola europeia é a migração de bitola que estará a acontecer em Espanha. Este é o argumento que sustenta o dramático corolário da “ilha ferroviária”, de que falo mais abaixo.

A realidade nua e crua é que Espanha não tem, ao contrário do que muitas vezes é dito, um plano para migrar toda a sua rede para a bitola europeia. Se tivesse, aliás, não podia ao mesmo tempo existir a alegação de que Espanha não está interessada em trazer a bitola europeia às nossas fronteiras como forma de impedir o progresso português. Uma coisa não casa com a outra.

A verdade é que este argumento é, muito provavelmente, fonte da enorme desactualização de que padecem boa parte dos promotores das teses da bitola europeia. Este é um tema dos anos 90 e aí ficou. Quando Jose Maria Aznar imaginou e fez aprovar o plano ferroviário espanhol – um dos mais ambiciosos do mundo e hoje em dia quase finalizado – a ideia associada era de uma migração massiva da rede espanhola, e não apenas nas novas linhas de alta velocidade, para a bitola europeia. Passageiros e mercadorias passariam a viajar com uma distância entre carris de 1.435 mm, em vez dos 1.668 mm históricos da península ibérica.

A verdade é que essa parte do plano durou pouco tempo, porque foi sujeita ao teste da realidade. É notável que Espanha tenha mantido no essencial o desenho de rede aí proposta, mas nem sequer na construção de novas linhas manteve a promessa de as erguer totalmente em bitola europeia.

De facto, Espanha tem hoje planos de migração de bitola que, a partir dos Pirinéus, chegarão a pontos já bem definidos e sem ramificações. Assim, desde o golfo da Biscaia e da estação fronteiriça de Irun, a bitola europeia chegará a Vitoria-Gasteiz, no País Basco, e por aí ficará nas próximas décadas. Neste ponto em particular, a obra em realização está a ser uma algaliação de via clássica – ou seja, nos troços onde o itinerário de bitola europeia coincidir com o itinerário histórico, a via terá duas bitolas em simultâneo, para utilização fácil por qualquer tipo de comboio. Esta solução é tecnicamente muito onerosa para manter e gerir, pelo que Espanha a limita ao mínimo indispensável.

Do lado do Mediterrâneo, como já citado, o corredor é bastante maior e vai até Algeciras, aproveitando o que pode ser descrito como um funcionamento como sistema quase individualizado. A generalidade dos serviços ou corre integralmente dentro deste corredor (e por isso é relativamente fácil mudá-los de bitola, sem disrupções de maior), ou então chegam a este corredor e servem apenas uma estação nodal (sendo por isso fácil fazer coabitar duas bitolas em pontos singulares, como uma estação). Este corredor inclui uma experiência de algaliação de via entre Valencia e Castellón, todo um drama operacional que Espanha quer esquecer rapidamente e que motiva o abandono de projectos diversos que imaginavam uma Espanha de bitolas coexistentes em muitos sítios mais. Com os comboios bi-bitola, estes são sobrecustos impagáveis.

No quadro da recente actualização regulamentar do quadro de investimentos em infraestruturas ferroviárias financiadas pela União Europeia, tudo isto se insere no previsto regulamentarmente – estados com bitolas distintas da bitola europeia têm obrigação de se coordenarem para eventual migração, mas não são forçados a avançar para a migração a qualquer custo e em qualquer cenário.

Como exemplo final, quer a LAV galega entre Vigo, Corunha e Ourense, como a LAV extremenha entre Plasencia e Badajoz estão e estarão estabelecidas em bitola ibérica, sendo até assumido pelas entidades espanholas que a migração da rede galega será a última de todas em Espanha, e nem sequer existe nenhum outro plano de migração de bitola para lá dos já atrás mencionados. Para bom entendedor, meia palavra basta.

O argumento emocional – a ilha ferroviária

Associado ao argumento anterior, foi surgindo o “soundbyte” da ilha ferroviária. Apesar de ser um “soundbyte” de alta performance – há que dar o mérito a quem o tem – este argumento emocional parte das premissas totalmente erradas já atrás denunciadas.

Uma das variantes aponta o desejo de Espanha não trazer bitola europeia até Portugal propositadamente para prejudicar a competitividade das nossas empresas exportadoras e dos nossos portos mas, se assim é, porque razão Espanha não prevê tráfego de mercadorias em bitola europeia para lá do arco mediterrâneo? Porque razão não planeia sequer servir Madrid, o seu coração económico? Ou zonas como as Asturias, potencias industriais? Não parece razoável pensar que Espanha tem um plano maléfico enquanto deixa Madrid ou portos como os de Santander, Gijon ou Corunha também de fora da rede de bitola europeia para tráfego de mercadorias.

Este argumento é ainda mais espantoso quando hoje em dia, com bitola igual dos dois lados da fronteira, a ferrovia apenas assegura 3% do trânsito de mercadorias por via terrestre entre os dois países. Se a bitola fosse a impedância maior, como se explicaria este valor de fazer corar de vergonha a nossa bela península?

A explicação para este valor raquítico está, naturalmente, em outros factores. Desde a falta de capacidade das vias instaladas (ou por estarem saturadas de tráfego, ou por não cabimentarem a circulação de comboios com comprimento acima de 450-500 metros), até pendentes excessivas ou velocidades muito baixas, os factores são diversos.

Mais espantoso é que alguns interlocutores apresentam o argumento da ilha ferroviária futura, quando Portugal em certos aspectos é hoje uma ilha ferroviária bem real. O grande impedimento à concorrência ou à simples interoperabilidade entre os dois países está na obsolescência do sistema de controlo de velocidade português (o Convel), que já não está disponível para ser instalado em novas séries de material circulante – na prática, até que se resolva a situação com a aprovação de um módulo que compatibilize o Convel com o sistema europeu ERTMS, nenhum comboio que nunca tenha tido Convel poderá entrar em serviço regular no nosso país.

Sim, é possível ser uma ilha ferroviária – mas não será por causa da bitola.

O argumento da interoperabilidade em Portugal

O argumento da interoperabilidade dentro do país é o argumento-chave para defender a manutenção da bitola ibérica, enquanto apenas se prepara rede e material circulante para uma eventual migração futura.

Se exceptuarmos a periférica (na óptica de rede) linha do Vouga, estabelecida em bitola de 1.000 mm, toda a restante rede portuguesa está estabelecida em bitola ibérica de 1.668 mm, o que implica que qualquer linha que não esteja nesta bitola vá implicar:

– Comboios que sirvam exclusivamente a nova linha em bitola distinta;

– Comboios polivalentes que são necessários apenas por causa da nova linha a construir em bitola distinta;

– Instalações fixas para permitir aos comboios a alteração de bitola em movimento;

– Transbordos de carga no caso dos comboios de mercadorias (massificação de comboios bi-bitola parece pouco viável em larga escala)

De facto, se não existe nem é previsto existir nenhuma linha em bitola distinta nas nossas fronteiras, é de facto um enorme tiro no pé criar linhas de bitola diferente dentro do país – elas serão uma ilha.

Isso mesmo foi algo que Espanha experimentou durante bastantes anos, o que complicou operacionalmente a sua rede ferroviária, efeito só reduzido pela gradual expansão da rede de alta velocidade exclusiva a passageiros (definição fundamental para se entender a expansão da bitola europeia por lá) e pela multiplicação de comboios de passageiros bi-bitola.

Se, um dia, for razoável migrar a bitola portuguesa, será porque gradualmente se preparou toda a rede para fácil migração (à medida das graduais e cíclicas renovações de elementos da infraestrutura) e porque já terá passado tempo suficiente para que do lado do material circulante essa migração possa ser relativamente fácil. O cenário de menor disrupção com a mudança é o cenário em que tudo muda simultaneamente, e tal cenário só existirá daqui a algumas décadas, na melhor das hipóteses. Isto é assim precisamente por ser o cenário que preserva a interoperabilidade onde estão os maiores volumes de passageiros e carga – no tráfego interior e no tráfego com Espanha, que em conjunto são a maioria esmagadora do tráfego potencial que andará por via ferroviária.

O argumento político – os regulamentos europeus

O renascimento recente da polémica da bitola vem a reboque da actualização do regulamento das redes transeuropeias de transportes, edifício europeu que prevê a constituição de uma rede “core”, de uma rede principal e de uma rede complementar por toda a Europa. Este regulamento prevê a convergência, a prazo, das duas primeiras tipologias para uma unificação de parâmetros de infraestrutura que incluem a bitola – a de 1.435 mm.

Quando um caso parece tão escandalosamente exemplo de incúria e má gestão, se calhar é porque a fotografia óbvia estará mais desfocada do que parece. O que se passou com a revisão aprovada pelo Conselho Europeu em 2022 é bastante exemplar de que há falta de trabalho de confirmação em Portugal – seja por parte de quem semeia o pé de vento, seja por parte de quem podia contrastar alegações e acaba por ser apenas veículo de transmissão.

Numa primeira proposta efectuada pela Comissão, o texto do que viria a ser o novo artigo 16A (European standard nominal track gauge for rail) era bastante radical nas definições e acções exigidas, não admitindo grandes excepções ou, pelo menos, complicando-as bastante. Ora acontece que o processo de apuramento deste artigo seguiu algo tradicional no processo legislativo europeu, a que se guiu uma consensualização com os Estados Membros. Foram públicas as discordâncias da Finlândia (cujos caminhos de ferro estão estabelecidos com a bitola russa de 1.524 mm), mas também de Portugal e Espanha. Com os bálticos (também com bitola russa), todas estas complexas realidades acabaram por resultar num texto aprovado que é muito mais extenso e, sendo certo que é excessivamente críptico, muito mais aberto à continuação da existência de grandes excepções ao longo das redes ferroviárias, precisamente para precaver impactos negativos dificilmente recuperáveis apenas em nome de um objectivo conceptual atraente, como da unificação imediata e plena em torno da bitola europeia.

O texto final pode ser consultado aqui: Trans-European Transport Network (TEN-T): Council adopts its position to ensure sustainable connectivity in Europe – Consilium (europa.eu)

Em resumo, e assegurando como objectivo a convergência para uma bitola única, o novo texto dá aos Estados Membros que detêm bitolas distintas o prazo de dois anos para fundamentarem com critérios sócio-económicos a eventual exclusão da obrigatoriedade de implantação de bitola europeia em novos investimentos ou renovações de linhas existentes, garantindo ainda toda a supremacia das opiniões cruzadas de Estados-Membros (por exemplo, para o caso de Portugal, o veredicto do vizinho, a Espanha, relativamente à confirmação ou desmentido de planos para linhas em bitola europeia em direcção a Portugal).

Como corolário, para o caso português e conhecendo-se o reduzido interesse de Espanha de aprofundar muito mais a experiência de migração do que a já planeada e já anteriormente mencionada, Portugal não terá como critério para aprovação de financiamentos europeus dirigidos a caminhos de ferro a sua implantação ou transição para bitola europeia, não constituindo este facto sequer uma perda de prioridade na altura de atribuição e distribuição de fundos europeus pelos Estados Membros.

É assim claramente falso que, doravante e com esta nova versão do regulamento, Portugal possa perder algum tipo de financiamento europeu pelo facto de estabelecer as suas linhas em bitola ibérica.

O argumento dos transbordos de carga

Sendo a grande preocupação o transporte de mercadorias rumo ao centro da Europa, importa esclarecer alguns tópicos fundamentais antes de entrar de cabeça no argumento dos transbordos de carga e seus efeitos nefastos.

Em primeiro lugar, olhando aos portos, a sua área de influência (o mítico “hinterland”) tipicamente não excede os 1.000 quilómetros e, normalmente, ficará bastante aquém disso. Isto vale para portos pequenos como os de Viana do Castelo ou Portimão, mas também para portos imensos como Sines, Valencia ou Roterdão. Os tráfegos portuários gerados para percursos terrestres superiores a 1.000 quilómetros são, tipicamente, muito específicos e resultam de equações pouco prováveis. O que quero dizer com isto é que outra ideia muito ouvida nos anos 90 não é aplicável em Portugal nem é minimamente concebível – a ideia quase espiritual de ver Sines a abastecer o centro da Europa de contentores vindos da América. Por isso, os portos nacionais estarão sempre muito bem posicionados para servir o interior da península ibérica, e sempre encostados a uma franja mais do que marginal de volumes para passar os Pirinéus – se é que tal alguma vez sucederá. A interligação de rotas marítimas e o baixo custo unitário oferecido pelos grandes armadores marítimos será sempre mais competitivo em grandes distâncias e promoverá sempre que a máxima em torno das áreas de influência dos portos se mantenha verdadeira.

Em segundo lugar, importa perceber qual é a pirâmide de prioridades das exportações portuguesas por via terrestre. As trocas comerciais com Espanha excedem a soma das trocas comerciais com Alemanha, França e Itália, por exemplo, sendo que para Alemanha e a generalidade dos outros países europeus a maioria das exportações é feita por via marítima. Para estes últimos tráfegos, interessa antes de mais garantir bom acesso ferroviário das indústrias nacionais aos portos portugueses como condição de obtenção dos mais baixos custos unitários de transporte para poderem competir no mercado europeu. Referência: Portugal: Exportações de bens: total e por principais países parceiros comerciais | Pordata

Por via terrestre, a percentagem de mercadorias com destino a Espanha contra os restantes destinos europeus, além-Pirinéus, é mais do dobro destes últimos. Ora, pelo já explicado ao longo deste artigo, a opção pela bitola europeia para mercadorias será inevitavelmente uma opção entre baralhar a competitividade ferroviária para trajectos ibéricos ou promover a sua progressão, sem disrupções. Perante este cenário, a real pergunta que se faz é se se quer forçosamente servir melhor uma minoria de exportações, potencialmente prejudicando a grande fatia das exportações portuguesas. É exactamente este o cenário.

Para os tráfegos além-Pirinéus, existem duas opções fundamentais no caso de ser mantida a excepcionalidade ibérica:

– Transbordar a carga em terminais de mercadorias nas zonas de reunião das distintas bitolas;

– Dotar frotas específicas de vagões, dimensionadas apenas para esse mais magro volume de mercadorias a transitar, com eixos bi-bitola, como por exemplo os OGI da ADIF – Eje O G I – Adif

O segundo caso pode ser, para as mercadorias, solução tão poderosa como as soluções já encontradas há muitos anos para os comboios de passageiros. Dadas as cargas muito maiores dos comboios de mercadorias, é também uma solução substancialmente mais cara, pelo que recomendável apenas para frotas de vagões mais contidas, de preferência alinhadas com os volumes efectivamente em exploração em ligações entre a península e o centro da Europa. Será preferível assumir um custo superior numa pequena frota apta a realizar estas ligações sem interrupção, do que assumir os custos exponencialmente maiores da migração total de tudo o resto.

Mas o primeiro caso não é de todo um disparate ou algo a desprezar. O tráfego ferroviário compete normalmente pelos custos unitários mais baixos que oferece e, tipicamente, não pela sua velocidade. Como operadores como Medway e Takargo já explicaram, preferem a aposta em terminais eficientes de transbordo de carga entre vagões (eventualmente até automáticos, como são exemplo os terminais Cargobeamer – Transportation solutions for a sustainable future – CargoBeamer®), do que a disrupção que uma bitola única de Portugal para o resto da Europa iria provocar. Foi mesmo utilizado o exemplo dos comboios Portugal – Alemanha, que já circularam muitos anos e que foram suspensos devido a obras em França, e que eram economicamente competitivos e até rápidos, mesmo prevendo 4 a 6 horas de transbordo no complexo transfronteiriço de Irun. Os moldes económicos e comerciais destas operações são conhecidos, testados e funcionam.

Assim, é muito frágil o argumento de que um transbordo de carga pode ser significativo a ponto de impedir o trânsito ferroviário de mercadorias e a sua oferta competitiva às empresas exportadoras nacionais. A realidade sugere, aliás, precisamente o contrário. O maior obstáculo à conquista de grandes fatias de tráfego internacional tem mais a ver com a natureza das exportações portuguesas, muito atomizadas, e onde o camião concorre mais facilmente do que um comboio. Daí que, muito mais do que pensar em bitola, o futuro da competitividade da nossa economia passa pela operação das chamadas auto-estradas ferroviárias, comboios transportando camiões ao longo dos eixos comuns que os camiões utilizam, mantendo a plena flexibilidade tanto na origem como na distribuição final. É este o obstáculo e a solução.

Para além disto, como se conclui acima, muitas das vezes poderemos até falar em não haver necessidade de transbordo, dado que as soluções que estão a aparecer para os vagões são economicamente competitivas para frotas cuja condição de dimensionamento é serem efectivamente ajustadas às reais necessidades de tráfego e não, como é muitas vezes habitual, sobredimensionadas. Estando o custo nos eixos e não nos vagões em si, será também possível às empresas ferroviárias equiparem-se de um parque de eixos polivalentes que poderão depois ir sendo aplicados e trocados em vagões dos mais variados tipos, em função da dinâmica do mercado e das alterações de tráfegos que existam, solução que permitirá reduzir ainda mais o risco financeiro associado a esta aposta.

O argumento da concorrência

O único argumento racional que concedo contra a eventual construção de uma linha Lisboa – Porto em bitola ibérica é a de que limita a concorrência. Apesar de ser uma limitação ligeira, ela existe efectivamente. Com toda a seriedade intelectual é preciso assumi-la, tal como é óbvia a constatação de que essa limitação é infinitamente mais pequena do que todas as limitações que seriam geradas para o país com a implantação de uma linha em bitola distinta no seio do seu sistema ferroviário.

A limitação da concorrência acontece por via indirecta, pois a maioria dos comboios de alta velocidade europeus são efectivamente produzidos em bitola internacional, sendo mais fácil a sua aquisição ou reaproveitamento. No entanto, os comboios bi-bitola são hoje uma realidade que abrange fabricantes importantes como a CAF ou a Stadler (para não falar num de nicho, como a Talgo) mas, mais importante ainda, o desenho dos comboios actuais permite produção em série de comboios iguais, com bitolas finais distintas, apenas com rodados de distinta bitola. Ou seja, a produção de comboios “mono-bitola” exactamente do mesmo modelo e preço dos comboios tradicionais de bitola europeia, mas aptos à bitola ibérica e totalmente prontos para migração se e quando necessário.

Por isso, embora conceda a seriedade intelectual e prática deste argumento, parece-me claro que a limitação resultante é muito ligeira e não será um óbice à entrada em força da concorrência uma vez que Lisboa e Porto estejam ligadas por uma linha de alta velocidade em bitola ibérica – é um dos mercados mais apetecíveis do continente europeu, já com manifestações concretas de interesse da parte de grupos como a Barraqueiro e Arriva. Por oposição a esta ligeira limitação, reforço, a limitação gerada no sistema ferroviário pela construção de uma linha isolada em bitola europeia seria infinitamente superior.

Conclusão

Como é legível no sumário e na argumentação que se lhe segue, não existe racional económico e operacional para pensar que se deve iniciar a migração para bitola europeia no nosso país e, muito menos, para iniciarmos a implantação de linhas isoladas no interior da nossa rede com uma bitola distinta, o que só propiciaria complexidade e custos de contexto acrescidos, de que as empresas exportadas portuguesas seriam as primeiras prejudicadas.

Em vez de optarmos por pensar em planos impossíveis de migração de bitola, ancoradas em falsas informações de pretensas migrações massivas do lado espanhol ou de imaginárias ameaças de sanções ou mesmo confisco de fundos europeus pela Comissão Europeia, é certamente mais produtivo apostar na expansão da rede ferroviária em Portugal, particularmente apostando numa maior segregação de tráfegos (passageiros e mercadorias) ao longo do principal eixo distribuidor do país (a coluna Lisboa – Porto), de modo a facilitar o trânsito de comboios de mercadorias ao longo do país.

Além da expansão da rede, que deve ser feita com linhas de performance inédita até aqui, também o esforço de renovação profunda e de construção de variantes a traçados existentes deve continuar a ser feita em bitola ibérica, para plena interoperabilidade dos comboios em Portugal e com Espanha, corrigindo factores de competitividade tangíveis e fulcrais como os da capacidade existente nas vias, a dimensão das vias de resguardo para cruzamento de comboios ou as rampas existentes na rede, elementos limitadores da competitividade do modo ferroviário e da oferta dos custos unitários de transporte por que anseiam as nossas empresas para melhor se posicionarem na cena europeia.

É totalmente inexplicável rotular o plano ferroviário nacional (ou qualquer outro semelhante) como retrógrado por não conter linhas em bitola europeia, quando estas ficariam sem seguimento em Espanha. Diria que são um trauma que ficou de efabulações ouvidas nos anos 90, e rapidamente mortas por essa altura, fundamentalmente próprias de quem tem uma distância excessivamente grande aos modelos de negócio da economia real, da operação concreta, e que pode com essa distância pensar estar a denunciar um crime de lesa-pátria tão óbvio que parece quase uma conspiração internacional ninguém o ter denunciado antes.

Custa-me particularmente perceber que um movimento é tão facilmente criado e mantido para discutir a distância entre carris de um plano de investimento, potencialmente condenando-o ao fracasso ou mesmo procurando suspendê-lo, quando nunca vi energia para pedir um quilómetro de vias adicionais que fosse, uma contradição insanável quando muitos dos argumentos mais dramáticos que são trazidos para a nossa praça se relacionam com a urgência de dotar o país e o sector exportador de uma melhor ferrovia.

Esta discussão da bitola já é longa e tem muitos anos, mas a repetição de mentiras e de fábulas não transformam este tema numa urgência real. Com efeito, a realidade prática e a experiência operacional de quem efectivamente está todos os dias a tentar oferecer os serviços às empresas exportadoras contam bem mais do que as conceptualizações de gabinetes e circuitos fechados. A realidade e o pragmatismo efectivamente desqualificam o discurso da bitola, convidando eu todos quantos se manifestam em torno destes unicórnios a focarem as suas forças num reforço substancial do investimento em caminhos de ferro por cá, independentemente da bitola, e focando-nos já na pressão ao Governo de Portugal para ampliar já a ambição do Plano Ferroviário que ainda se encontra em discussão, e por garantir meios financeiros inéditos para que Portugal possa efectivamente cortar distâncias para o resto da Europa.

Tal como se resolveram os problemas das fronteiras eléctricas de distintas electrificações há bem mais de 60 anos, também a convivência de distintas bitolas tem hoje soluções bem mais ágeis e baratas do que nunca, para a minoria de tráfegos que necessitam desse tipo de soluções à partida de Portugal.

A estratégia nacional para a bitola deve continuar como até aqui – preparando cada troço de via renovado ou construído para eventual recolocação dos carris no futuro (migrando a bitola) e mantendo a aquisição de comboios novos que, actualmente, já permitem praticamente todos a troca fácil de bitola com substituição apenas dos seus rodados, sem impactos nos órgãos críticos embarcados.

Essa é a doce moderação e o fácil equilíbrio entre o desejo de um dia a distância entre carris ser igual por toda a Europa e a necessidade de mantermos um sistema a funcionar e capacitado para crescer aquilo que tem de crescer – só para as mercadorias se prevê triplicar o tráfego ferroviário nas actuais condições, pelo que não é boa ideia abraçar ideias que provavelmente o fariam cair em flecha, sem recuperação previsível num horizonte de um geração.

Enterre-se o machado da guerra das bitolas. Escutem a operação ferroviária.