O reordenamento ferroviário do Alentejo

O reordenamento ferroviário do Alentejo

2 Outubro, 2022 12 Por Joao Cunha

Quando descemos abaixo do rio Tejo, a orografia suaviza e humaniza-se – a linha do horizonte flutua docemente à medida da suave inclinação dos montes alentejanos, o amarelo do chão contrasta com o azul do céu e o montado alentejano conserva os sabores de uma das melhores gastronomias do mundo.

O que parece uma ode à qualidade de vida esconde a dureza dos raios solares, da falta de sombras e da falta de água. As construções de cal branca e a melanina na pele protegem quem se aventura pelas vastas planícies. Planícies tão vastas que albergam um fenómeno populacional pouco típico do país – as populações concentram-se em aldeias, vilas e cidades bastante mais distantes entre si do que vemos acima do Tejo ou no Algarve – perfeitamente definidas, de fronteiras certas, com perímetros tipicamente circulares.

A rede ferroviária no Alentejo foi desenhada com dois grandes objectivos, num período em que os carros ainda não existiam e concessões de distâncias eram possíveis. A grande linha para o Algarve passou primeiro por Beja, antes de ser feita a linha do Sado, via Grândola, que encurtou decisivamente a distância para o antigo reino dos Algarves. A distância adicional via Beja não era um problema na altura, mas como nem tanto ao mar nem tanto à terra, isso justificou a sua não passagem por Évora – era preciso seguir mais rápido e mais directamente para Sul.

Depois veio a necessidade de conectar com Évora e Estremoz, nascendo assim a linha de Évora. O outro grande objectivo da rede ferroviária alentejana era conectar as maiores herdades agrícolas por caminho de ferro, assegurando facilidade e competitividade no escoamento dos produtos agrícolas do sempre prometido e adiado celeiro de Portugal. Não havia problema de deixar Évora e Beja em eixos distintos, estávamos no século XIX e o carro ainda tardaria a aparecer.

Era importante chegar a Reguengos de Monsaraz, e daí atingir Zafra, mais tarde. Mais uma linha foi por isso criada, mas de Reguengos a Zafra apenas algumas construções ferroviárias do lado espanhol chegaram a ver a luz do dia, sem nunca terem conhecido os carris. O ramal de Reguengos foi dos primeiros do país a adoptar um Regime de Exploração Simplificada (RES), a partir ainda dos anos 50. Ao mesmo tempo, idêntica medida foi tomada no ramal de Mora, um ramal que saía de Évora para Norte para conectar com Arraiolos, Mora e, num futuro nunca alcançado, Ponte de Sôr. Mesmo antes da massificação do automóvel e dos camiões, este ramal conheceu sucessivos encurtamentos de oferta e promessas de encerramento, o que cerceou rapidamente as ideias de expansão e de fecho da malha para Norte.

Era ainda preciso garantir a ligação às minas de Aljustrel e assim nasceu o ramal de Aljustrel, saindo da estação de Castro Verde (a 10 kms da vila…). A sua curta extensão denuncia a oportunidade perdida de fazer passar a linha do Alentejo por ali, sem se criar mais um ramal terminal, mas os tempos e as prioridades eram outras. De Beja saía também o ramal para Moura, que descia a Serpa antes de subir novamente, e com estações localizadas bem no meio de herdades agrícolas perdidas nos montes alentejanos, que prometiam encher os silos de Beja e daí alimentarem o resto do país.

Foi já na década de 40 que o fecho da malha se realizou a partir de Estremoz e até Portalegre, outra estação a quase 10 quilómetros da cidade que serve. Aí conectando com a linha Abrantes – Badajoz, a linha acabou por nunca ser rápida o suficiente para servir a hipotéticos tráfegos Évora – Espanha, numa fase em que os automóveis começavam a aparecer e a concorrência dos camiões se concretizava.

Falta ainda destacar o apêndice de Montemor – assim se pode chamar ao ramal que saía da Torre da Gadanha em direcção a Montemor-o-Novo, outra vila importante e que passou ao lado da linha de Évora por poucos quilómetros.

Numa região sempre tão vazia de população e tão deprimida economicamente, a dispersão do serviço ferroviário por uma miríade de ramais haveria de condenar inevitalmente a sua maioria. Para o serviço de muitas das povoações, a alternativa rodoviária seria mais racional (até ambientalmente), sobretudo porque a disposição ferroviária implantada obrigava a multiplicar meios para chegar aos vários municípios.

Quando estamos num momento decisivo para o futuro ferroviário da região, importa perguntar: como podemos e devemos evoluir a ferrovia alentejana para corrigir alguns erros do passado e mitigar o efeito da perda de população, que continua, e que pode alimentar um ciclo vicioso de desinvestimento de uma futura oferta ferroviária?

Duas prioridades – Espanha e Algarve

O Alentejo, apesar da baixa densidade, é servido por dois eixos distintos. A pequena escala é assim ainda mais dispersa

Sobram três eixos ferroviários no Alentejo. O principal, sai de Lisboa em direcção a Évora, aguardando conclusão até final de 2023 da linha que continua para Badajoz, com perfil de alta velocidade. Esta é e será a linha onde maior escala e procura pode estruturar o serviço ferroviário de todo o Alentejo – o eixo que justificará o investimento em meios operacionais, em campanhas de comunicação, na contratação de pessoas, e por aí adiante.

Os dois restantes eixos são um problema a resolver: o eixo Casa Branca – Beja começa numa estação sem qualquer utilidade que não seja a do transbordo, e não tem continuidade para Sul. O mesmo é dizer que o serviço a Beja, com a actual linha, não tem outra justificação que não a própria cidade de Beja. Como abordei anteriormente, a escala existente compromete a existência e investimento num serviço ferroviário frequente – Ligações ferroviárias a Beja – Planeamento e Operações (portugalferroviario.net)

O terceiro eixo é a linha Abrantes – Badajoz, de grande importância para o tráfego de mercadorias mas que passa ao lado de Portalegre, capital de distrito cuja estação está a cerca de 10 quilómetros do centro. Tal como Beja – aliás, mais criticamente do que Beja – a sua existência num eixo singular compromete a oferta ferroviária competitiva, assistindo-se a oferta variável de há 40 anos a esta parte, mas sempre em patamar de baixa oferta e de baixa procura.

Como se pode assim dar coesão aos três eixos alentejanos, cruzando o eixo Lisboa – Espanha e Lisboa – Algarve em benefício do aumento de escala à passagem pelo Alentejo?

A modernização da linha para Beja e da linha do Sul

No PNI 2030 está prevista a modernização e electrificação da linha para Beja e a resolução do gargalo que existe na linha do Sul, que actualmente compromete a proposta de tempos competitivos no acesso ao Algarve.

Como explicado no artigo já citado anteriormente, Beja não deve ficar num eixo isolado – a dispersão de meios de que necessitará comprometerá sempre a disponibilização de um serviço ferroviário atractivo, dada a fraca população existente entre Casa Branca e Beja, a que se soma uma mobilidade especialmente baixa das suas populações.

Ao mesmo tempo, o desenho da nova linha do Sul em estudo pela Infraestruturas de Portugal aponta como a possibilidade mais aliciante um novo traçado entre Torre Vã e Faro, passando por Castro Verde (um dos concelhos mais ricos do país) e Loulé.

A oportunidade está em cima da mesa – basta agora juntar as peças.

A vermelho, a proposta mais ambiciosa da IP para resolver a falta de competitividade no acesso ferroviário ao Algarve

Estando a linha Lisboa – Évora pronta (ou em vias disso) para a prática de velocidades de 200 km/h em toda a sua extensão (faltará – sempre? – a terceira travessia do Tejo), aceder a Beja passando por Évora não é um desvio relevante para os tempos de viagem a praticar. Em vez de renovar e electrificar a linha do Alentejo entre Casa Branca e Beja, deve ser feita uma nova ligação saindo de Évora em direcção a Viana do Alentejo e aí retomando a linha do Alentejo até Beja, tudo com traçado geometricamente favorável à prática de velocidades de 200 km/h. Beja pode ficar a 1h45 de Lisboa neste cenário, ou a 1h15 em caso de construção da Terceira Travessia do Tejo – imbatível.

Se a passagem por Évora permite a integração num eixo de maior procura e que por isso favorece a proposta de mais serviços ferroviários, a recuperação e revitalização do itinerário que de Beja continua para Sul deve interceptar e pressionar para a adopção do novo traçado da linha do Sul entre Torre Vã, Castro Verde e Faro. De facto, esse novo traçado deve ser justificado por ser o que mais encurta a ligação de Lisboa ao Algarve, mas também por propiciar a ligação a partir de Évora e de Beja para Sul, aumentando a escala do serviço ferroviário à passagem por Beja mas também a utilizar o troço final da linha do Sul.

Por fim, não nos esqueçamos, esta aposta beneficia também com a conclusão da linha Évora – Espanha, como abordado neste outro artigo: Desenvolvimento ferroviário no sul do país – Planeamento e Operações (portugalferroviario.net)

Em fase adiantada de construção, a nova linha Évora – Caia abre as portas a um serviço ferroviário rápido para Elvas e Portalegre, e abre todo o Baixo Alentejo e Algarve à Extremadura e a Madrid, caso haja continuidade de Évora e Beja para Sul.

Com uma linha Évora – Beja competitiva e uma nova ligação a Faro a sair de Castro Verde, aumentará o fluxo directo Lisboa – Algarve, será possível também propor comboios Lisboa – Algarve via Évora e Beja com frequência elevada durante o dia e, ainda, o de propor ligações ultra competitivas para aceder de Madrid e Extremadura ao Algarve, que fica mais próximo de Madrid com esta solução do que a costa andaluza!

Não esquecendo, como também já mencionei numa outra série de artigos, que este desenho de malha permite também resolver problemas existentes e previsíveis de capacidade em todo o sistema ferroviário da região Sul, com ligação a Sines: Sistema ferroviário Sul / Alentejo / Sines – problemas de capacidade à vista – Planeamento e Operações (portugalferroviario.net)

O eixo Espanha – Évora – Beja – Algarve pode ainda justificar a alteração do traçado da linha do Leste para incluir verdadeiramente Portalegre na rede ferroviária nacional, como defendido aqui: Portalegre, um problema fácil de resolver – Planeamento e Operações (portugalferroviario.net)

Portalegre pode ficar a cerca de 2h20 de Lisboa, ou 1h50 quando houver Terceira Travessia do Tejo. Pode ainda ficar a 1h20 de Beja ou a 2h20 de Faro, uma proximidade temporal que encurta distâncias em todo o Alentejo, tornando-o mais próximo, menos árido.

Ambicionar é evitar o desperdício

A Sul do Tejo, a política ferroviária mais eficiente que mais combate o desperdício de dinheiros públicos é ter uma visão integrada ambiciosa, por oposição à clássica visão de tratar os eixos ferroviários como originalmente concebidos, entregues a renovações parcelares, independentes, e que arriscam a deixar o Alentejo com os mesmos problemas de falta de escala e de procura que comprometerão um melhor serviço às populações e, com isso, a própria viabilidade dos investimentos.

O Alentejo ferroviário é o caso clássico em que a soma de pequenos investimentos será muito mais cara e muito menos viável do que a integração de menos mas maiores investimentos.

Não podemos ver a linha do Leste no traçado original e electrificada como está. Não podemos ver a ligação a Beja como um apêndice isolado da linha de Évora. Não podemos ver a renovação da linha do Sul para o Algarve como um eixo só para a ligação a Lisboa. Não podemos pensar na linha em construção de Évora ao Caia como uma linha para servir apenas Sines e Lisboa.

Se a correcção do traçado da linha do Sul passar por Castro Verde, Lisboa – Algarve será muito mais competitivo do que com as outras opções em disputa. E ao mesmo tempo, o Algarve ficará mais competitivo para as regiões de Madrid e da Extremadura do que a costa andaluza. Se Beja for servida por uma pequena nova linha e modernização da restante distância, fica integrada num eixo Lisboa – Évora – Beja – Algarve e num eixo Madrid – Badajoz – Algarve. Mesmo com pouca população, esta integração em eixos maiores justificará, sem desperdício de meios, uma oferta mais frequente, mais rápida e mais atractiva – que no limite gera o ciclo virtuoso do aumento da atractividade da região.

Ver todas estas hipóteses integradas e seleccionar os projectos em função disso quebra um ciclo vicioso e gera um ciclo virtuoso.

Para 2030 é assim importante evitar a modernização da linha do Alentejo tal como está e é importante evitar corrigir a viagem para o Algarve em cima do actual traçado da linha do Sul.

Proposta de intervenções

  • Torre Vã – Castro Verde – Loulé – Faro: 600M€ (estimativa da IP + 20%)
  • Évora – Viana do Alentejo – nova linha para 200 km/h: 120-150M€
  • Viana do Alentejo – Beja – Castro Verde – electrificação, sinalização e correcção de traçado para 200 km/h: 200M€
  • Correcção da linha do Leste Crato – Portalegre – Assumar + electrificação e sinalização: 120M€

Basicamente 90% dos problemas ferroviários de todo o Alentejo e Algarve seriam resolvidos por cerca de 1.050 milhões de Euros, dos quais 50% facilmente financiáveis pela União Europeia no quadro 2030, ficando para o Orçamento do Estado um raquítico esforço inferior a 70M€/ano até 2030.

Traçado proposto para a linha Évora – Viana do Alentejo, onde se reencontraria com a linha do Alentejo, paralelo quase sempre à EN 254

Isto compara com um esforço de cerca de 400M€ para renovar a linha do Sul mais ou menos pelo mesmo canal, ganhando 30 minutos na ligação Lisboa – Faro em vez de 40, a que se acrescem 150M€ para renovar a linha Casa Branca – Beja, com concordância em Casa Branca, que deixará Beja isolada num ramal terminal, com os problemas de oferta futura que se conhecem. Este investimento para Beja é inviável, social e economicamente. As intervenções parcelares em cima da mesa custam 50% da visão integrada, mas não resolvem sequer 30% dos problemas existentes a Sul do Tejo.

A vermelho, proposta de João Cardoso para novo traçado da linha do Leste, para incluir Portalegre.

Fazendo o salto de 550 para 1.050 milhões de Euros, inclui-se também Portalegre em modos devidos na rede ferroviária e a procura potencial dos eixos intervencionados mais do que duplica face ao cenário inicial – torna-se mais barato ser mais ambicioso e garante-se um nível de serviço às populações que uma visão não integrada de eixos segregados não garante.

Esta é a última oportunidade de pensarmos a ferrovia no Alentejo adaptada às condicionantes sociais e territoriais a Sul do Tejo. Qualquer euro que seja colocado numa visão segregada dos distintos eixos deixará enormes oportunidades por agarrar – como a de colocar o Alentejo e o Algarve no centro da península Ibérica.

Estamos na última chamada.