Um roteiro para os caminhos de ferro portugueses

Um roteiro para os caminhos de ferro portugueses

27 Agosto, 2023 0 Por Joao Cunha

Desta vez não me preocuparei em detalhar ou argumentar sobre propostas, mas tão somente deixar o esboço de um possível roteiro para transformar decisivamente – e sem tretas nem propaganda – os caminhos de ferro nacionais.

Que estratégia, afinal?

Uma estratégia define-se como um plano de acção orientado a produzir resultados consistentes a médio e longo prazo. Parte também de se conhecer a missão, a visão, os valores e os objectivos que orientam a definição estratégica. Alguém conhece quais são eles actualmente, ao nível da República? Tirando alguns objectivos inscritos pela União Europeia no Livro Branco respectivo, existe algum outro? Fica a minha proposta.

A visão: Ser uma rede de mobilidade em Portugal que possa ser a espinha dorsal das deslocações urbanas e inter-urbanas da população e dos turistas do país, complementada subsidiariamente por outros meios de mobilidade colectivos e suaves para subir significativamente os níveis de vida e comodidade em solo nacional.

A missão: Disponibilizar serviços ferroviários competitivos, concorrentes e de alta frequência com altos níveis de serviço de infraestrutura e dos operadores, irrigando todos os centros urbanos cuja dimensão justifica meios pesados de mobilidade e ligando os territórios continentais.

Os valores: Atenção ao cliente, proximidade das comunidades e indústrias, sustentabilidade ambiental, frugalidade energética, inovação tecnológica, transparência e responsabilidade.

Os objectivos: Servir todas as infraestruturas de nível hierárquico superior (portos e aeroportos), ligar todas as capitais de distrito com Lisboa e/ou Porto em até 2h30. Triplicar a quota modal no transporte de passageiros até 2040 e duplicar a quota modal no transporte de mercadorias até 2035.

O pilar táctico – como romper a propaganda?

Se o capítulo dos objectivos estratégicos é, aqui e ali, namorado pela propaganda política e pelos panfletos de campanha, quando se desce ao patamar táctico para possibilitar a sua execução, os problemas aumentam significativamente, desde logo por omissão – não são criados nem ajustados os instrumentos.

No financiamento

Face ao atraso infraestrutural do país e face à perda de capital público (despesas anuais de investimento inferiores à depreciação anual do capital público), dada a prioridade que se deseja para os caminhos de ferro e os preceitos estratégicos já antes elencados, é necessário garantir:

  • 0,5% do PIB em despesas de investimento em infraestruturas ferroviárias, financiadas pelo Orçamentado de Estado (e não por fundos europeus, eventualmente que possam complementar);
  • A autorização de despesa associada a programas de investimento pluri-anuais, com objectivos e assumpções inscritas na autorização, de modo a que entidades responsáveis (como a Infraestruturas de Portugal) possam operacionalizar de forma ágil os programas aprovados pelo poder executivo;
  • Expansão do papel da Parpública na aquisição e gestão de meios operacionais detidos pelo Estado, em relação com as concessões de serviço público que o Estado deseja contratar e manter;
  • Revisão dos contratos de serviço público e seus objectivos com os actuais operadores (CP e Fertagus), com segregação total de contas entre serviços financiados pelo Estado e outros. Nos objectivos devem ser previstas majorações de financiamento em acordo com a superação de metas ambiciosas de nível de serviço e atracção de procura, de modo a contar com os operadores para o esforço amplo que há que fazer para captar mais passageiros.

Na estrutura do sector

O sector ferroviário em Portugal tem disfunções claras – de desenho, mas também de distribuição de meios.

  • A autoridade nacional de segurança deve ser individualizada e retirada da alçada do IMT, em reporte directo ao ministério;
  • O IMT deve estar vocacionado a planeamento estratégico, assessoria do ministério e fiscalização do sector, e ainda controlo das concessões de serviços públicos que o Estado tem interesse em manter e expandir;
  • Todos os meios de transporte ditos pesados devem estar sob alçada deste ministério – caminhos de ferro, mas também transporte fluvial, portos, aeroportos e caminhos de ferro urbanos;
  • Para gestão focada e com a participação das áreas do Estado intervenientes, o Gabinete de Programas de Investimento deve estar ao nível da Infraestruturas de Portugal e, além da participação destas, deve incluir os organismos do Estado responsáveis pelas principais etapas de execução. A equipa multidisciplinar deve ter uma liderança a reportar ao ministério dos Transportes e ser responsável por programas como o Ferrovia 2020 e o PNI 2030, como exemplos;
  • GPIAAF e AMT, como entidades independentes da esfera do Estado, são naturalmente parte do ecossistema do sector mas sem “hard line reporting”;
  • Os operadores do sistema obedecem ao esquema regulamentar em vigor na rede, não tendo qualquer tipo de intervenção directa do ministério;
  • Com excepção da Infraestruturas de Portugal, nenhuma empresa de transportes deve manter o estatuto de EPE, passando todas, sem excepção, a Sociedades Anónimas de capitais, para já, 100% públicos.

Clarificações importantes neste novo modelo institucional são devidas nomeadamente com os novos papéis da Autoridade de Segurança Ferroviária (que sai do IMT), dos papéis de planeamento, assessoria e controlo (assumidos pela Função Pública, via IMT, e esvaziando os gabinetes de ministérios e em parte da IP), da IP (foco total na gestão, manutenção e rentabilização da rede) e do novo gabinete dos programas de investimento (que pode ter outro nome).

À luz do que serão reestruturações recomendáveis de IP e CP, existirão certamente algumas áreas e profissionais destas empresas que são fundamentais para constituir a liderança do Gabinete de Programas, mas também para densificar a capacidade do IMT na assessoria e desenvolvimento de planos para o sector, bem como para a Autoridade Nacional de Segurança Ferroviária.

Tem de ser dado um grande foco à operacionalização do regulador, a AMT, como o garante e defensor de boa parte da estratégia definida mais acima neste artigo. É indispensável que a presidência da AMT seja motivo de concurso público internacional e que o seu orçamento seja suficientemente independente das flutuações naturais que o Orçamento do Estado tem de ano a ano, podendo ficar por exemplo indexado a uma certa percentagem de total de investimento ou de volume de negócios do sector, o que constitui desde logo um incentivo para que a AMT adopte práticas, comportamentos e atitudes que efectivamente promovam a melhoria da eficácia do sector, de modo a alcançar maior quota modal no modo ferroviário.

Objectivos tácticos:

  • “Time to market” de novos investimentos reduzido para um máximo de 4 a 5 anos para investimentos até 1.000 milhões de Euros, e até 8 anos acima disso;
  • Consolidação em Portugal de capacidade industrial em dimensões como projecto, construção e manutenção, com a confiança da consistência e regularidade do investimento e de igualdade no acesso às oportunidades apresentadas;
  • Auditorias anuais completas e profundas a todas as componentes do sector, com relatórios publicados e propostas de correcção, partindo da “baseline” que é a estratégia e objectivos definidos;
  • Garantia de mobilização dos meios existentes para os organismos onde façam falta, alinhados com os seus objectivos e âmbitos redefinidos;
  • Alcance da autonomia de gestão nos operadores de capitais públicos, que deixarão de ter o lastro do estatuto de empresas públicas mas também os benefícios opacos dessa definição;
  • Operacionalização do Plano Ferroviário Nacional até 2035-2037;
  • Reformulação de toda a frota que serve os serviços públicos contratados pelo Estado até 2035;
  • Uma “unidade de propósito e de rede” – independentemente de concessões ou da distinção entre operadores e gestor de infraestruturas, interoperabilidade de bilhética, serviços standard de apoio ao longo da rede (bilheteiras, informação ao passageiro, etc), são parte da definição de um único sistema ferroviário – o português – que emana activamente do IMT e passivamente via AMT.

O pilar operacional – onde a magia acontece

Se tivermos uma estratégia e se a traduzirmos numa táctica capaz de a agilizar, a operacionalização ocorrerá de forma mais natural – os principais controlos e incentivos estarão já salvaguardados e os principais actores actuarão no seu interesse particular, que é remunerado ou reconhecido pelo alcance dos objectivos colectivos acima aduzidos.

A intervenção política regular deve ser aqui marginal ou quase inexistente, mas porque interessará fechar uma reforma do sector com a garantia que as suas entidades estão capazes de cumprir os seus papéis, importa realçar a necessidade de garantir alguns pontos críticos na gestão / operação das entidades mencionadas:

  • Na Infraestruturas de Portugal, com uma efectiva separação da exploração entre estradas e caminhos de ferro – não coloca em causa o benéfico objectivo de concentração financeira e de meios;
  • Na CP, com uma reestruturação ampla da empresa que permita identificar profissionais fundamentais ao reforço das novas e ampliadas estruturas já citadas, mas também que conduza a CP a uma estrutura de meios que se possa equiparar à de uma empresa de operação ferroviária, nos seus vários níveis, área de exploração e áreas de suporte. O contrato de gestão deve complementar a autonomização da empresa em sociedade anónima;
  • Na AMT, com uma reforma dos quadros políticos e expansão do quadro e capacidades financeiras em linha com a necessidade de captar talento também fora de portas para que Portugal possa dispor de um regulador eficaz mas também na primeira linha dos reguladores europeus, com um papel-chave para ser sempre uma força motriz que puxe o sector ferroviário para a excelência;
  • Na gestão de infraestrutura, com IP, IMT e AMT alinhados, importando modelos de gestão e garantia de capacidade capazes de promover não apenas uma saudável concorrência, mas a efectiva atracção de novos actores – quer seja no transporte de passageiros ou de mercadorias – com o objectivo de maximizar a utilização da rede ferroviária e, com isso, maximizar o benefício social das infraestruturas;
  • A relação entre IMT e Parpública devem permitir dimensionar uma frota pública de comboios capazes de servir as concessões de serviços públicos – de modo a permitir ciclos de contratação mais curtos e promovendo mais concorrência (e inovação), é fundamental segregar o ciclo de vida de uma concessão do ciclo de vida do material circulante, tema fundamental e que distingue essencialmente concessões ferroviárias das rodoviárias. Toda a actual frota de CP e Fertagus dos serviços públicos deve ser substituída até 2035;
  • Criar os fóruns políticos necessários para um escrutínio adequado do sector, com especial relevância da AMT enquanto entidade independente de supervisão e do IMT enquanto guardião das políticas públicas e seus objectivos.

Notas finais

Focar o Estado em garantir os meios financeiros e dignificar algumas das instituições do sector são fundamentais para que se possa voltar a ancorar capacidades e uma continuidade de acção que não podem estar cativas de gabinetes de ministérios ou ciclos políticos. À política cabe formular ou alterar a estratégia (que, já agora, tem de existir formalmente e não apenas em palavras).

De modo a enfrentar os desafios decisivos de custo de vida, competitividade com mercados internacionais e incentivos adequados à missão de cada entidade, as divisões e distintas hierarquias são fundamentais para clarificar papéis e, dando autonomia e responsabilidade, permitir que os operadores no fim da linha possam ter as condições para procurar garantir os recursos necessários a uma operação centrada no cliente e nos objectivos de serviço definidos nas respectivas concessões. Todas as entidades têm de estar focadas no seu “core business”, sendo claramente desincentivadas todas as actividades que estejam desligadas do objectivo último do sector ou que já estejam assumidas em primeira instância por outras entidades do sector.

Com a arrumação do sector e algumas das medidas descritas, os caminhos de ferro portugueses poderão fluorescer em ecossistema não totalmente igual mas semelhante nos propósitos e incentivos aos ecossistemas de maior sucesso na Europa, com um aumento claro da responsabilidade da política em honrar seus compromissos e promessas e a uma autonomização das entidades abaixo que promovem a captação do talento ao invés de o expulsarem, característica que permanence especialmente nos caminhos de ferro nacionais, cuja estrutura e mentalidade ainda é muito sovietizada e desactualizada dos dias que correm.