
Ainda a bitola – resposta a Henrique Neto
Uma resposta ao artigo do Henrique Neto.
O tema do desenvolvimento ferroviário no nosso país tem sido marcado por pouca discussão e menos acção ainda. Aproveitando a útil resposta de Henrique Neto e Mário Lopes ao meu último artigo, gostaria de aprofundar alguns temas que referem e que, no fim da linha, conduzem à conclusão que tirei no meu último artigo: a de que Portugal não tem um problema com a sua bitola ferroviária.
Sendo totalmente verdade que a União Europeia ambiciona transferir boa parte do tráfego rodoviário para a ferrovia e que, por isso, pode existir bastante tráfego a atrair pelo meio ferroviário, não é menos óbvio que sucessivos objectivos europeus de transferência modal têm ficado muitíssimo aquém do desejado, a ponto de Portugal, com apenas 14% do seu tráfego de mercadorias a passar pelos caminhos de ferro, ser um dos países com um comportamento mais interessante neste domínio. Ou seja, provavelmente passámos as últimas décadas a apontar a artilharia para o alvo errado.
É importante reflectir porque é que, apesar de Portugal e Espanha partilharem a mesma bitola, o transporte ferroviário não absorver mais do que 2% do tráfego de mercadorias entre os dois países. Nascem daqui as conclusões mais relevantes e que permitem perceber porque é que, muito antes de nos preocuparmos com a bitola para ligação além-Pirinéus, temos muitos milhares de milhões de Euros a investir em objectivos mais terrenos.
Do artigo de Henrique Neto, fica em falta uma resposta fundamental para a própria priorização do investimento na mudança de bitola: quanto podia custar à economia e ao transporte ferroviário a alteração das linhas, ramais, plataformas logísticas e fábricas e quando poderia custar a substituição das dezenas de milhar de veículos existentes em Portugal e em Espanha, tornados imediatamente obsoletos e que nem pré-preparados estão para receberem rodados de diferente bitola.
O faseamento a quatro décadas é uma ilusão: se por hipóteses demorássemos quatro décadas a migrar a bitola, para comportarmos os custos do lado do material circulante e não só, significaria que ao longo desse tempo se multiplicariam os pontos de transbordo em Portugal e em Espanha, afectando o trânsito de mercadorias com o nosso principal parceiro económico. Ou seja, se agora dizemos que dois pontos de troca são um problema (Irun e Portbou), iríamos passar 40 anos com pontos de transbordo multiplicados e dispersos por todo o lado!
Nesse caso, a utilização dos novos eixos OGI, em homologação em Espanha e aptos a duas bitolas, poderiam ser a solução. Este tipo de eixos, muito distantes dos que em tempos equiparam por exemplo os vagões que realizavam os tráfegos Polónia – AutoEuropa ou alguns transportes de automóveis entre França e Espanha, têm precisamente a esperança de tornar comportáveis física e economicamente a sua instalação para as frotas destinadas a aventuras para lá dos Pirinéus e, sendo assim aptos à utilização em grande escala, condenam desde logo a urgência de um caos logístico tão grande como o que a mudança generalizada da bitola pressuporia.
Quando falava de um novo parque, falava mesmo de um parque de material circulante. Quando Espanha avança para a bitola europeia, avança porque nessas linhas circula uma frota que seria sempre específica – apta a muito altas velocidades. Os seus ramais, para obter capilaridade, são já em bitola ibérica, de modo a manter o serviço a tudo o que hoje existe e existirá. Os autores da resposta ao meu artigo dão desde logo o exemplo da linha de alta velocidade da Extremadura como um exemplo de linha de prestações mistas (e, portanto, não dedicada a passageiros nem à tal nova frota específica) em que Espanha está a investir, mas esquecem-se que essa linha está a ser finalizada em bitola ibérica, sem existirem planos para a sua migração, pelo menos antes de ser renovado e electrificado o importante eixo Mérida – Puertollano, que ficará sempre em bitola ibérica, e que a prazo permitirá aos comboios de mercadorias nacionais um acesso privilegiado ao centro de Espanha. Ou seja, o argumento que dão para reforçar a tese da urgência da bitola europeia reforça, na realidade, a razoabilidade da manutenção da bitola ibérica.
Boa parte desta insistência na bitola europeia faz-se de factos errados ou realidades inexistentes. É feita alusão a um imenso esforço anual que Espanha faz na bitola europeia, mas não é dito que esses montantes não apenas não são apenas para linhas com essa bitola (linhas novas como Pajares, eixo Mediterrâneo ou Extremadura são em bitola ibérica ou bi-bitola), como naquelas onde tal é o caso se tratam de linhas exclusivas para passageiros (em construção estão as linha de Burgos ou Murcia) ou ligações próximas de França (País Basco).
O País Basco e a Galiza mostram-nos aliás bons exemplos de que não existe uma corrida em Espanha à migração de bitola, nem tal é previsto por nenhum actor do sector neste momento. No País Basco está em construção uma linha para usos mistos, ligando Vitória com Bilbao e San Sebastian, em bitola europeia. Estará ligada a França, entre San Sebastian e Irun, pela via convencional adaptada com terceiro carril, ou seja, permitindo a circulação de comboios em bitola europeia e bitola ibérica. Esta nova linha coexistirá ainda com as linhas existentes em bitola ibérica, por onde as mercadorias podem e vão continuar a circular, nomeadamente entre San Sebastian e Vitoria e entre Miranda de Ebro e Bilbao. Em particular, a primeira tem um perfil bastante adequado aos tráfegos pesados – leia-se, com rampas moderadas.
O caso da Galiza é ainda mais interessante, até porque nos é mais próximo. De facto, a linha de Alta velocidade da Galiza a Madrid está em vias de finalização, e em bitola europeia. Este ano estará terminada entre Madrid e Sanabria e, para 2021, anuncia-se o fecho da malha em Ourense. De Ourense, parte a linha para Santiago de Compostela que, nessa altura, se estima que migre da actual bitola ibérica para bitola europeia. Apesar de contar actualmente com bitola ibérica, esta LAV não tem qualquer tráfego de proximidade (regionais, suburbanos ou afins) nem de mercadorias – que continuam a usar as vias convencionais paralelas.
Em Santiago, os comboios encontrarão a linha Vigo – Corunha, uma LAV de usos mistos em bitola ibérica, cuja troca de bitola não está prevista, entre outras coisas, porque tem um tráfego de mercadorias importante. Na realidade, será instalado em Santiago um cambiador de bitola, onde os comboios de alta velocidade transitarão da bitola europeia, para continuarem para a linha Vigo – Corunha. Esta, mantida em bitola ibérica, continuará a relacionar-se com as linhas Corunha – Lugo – Monforte e Vigo – Ourense – Monforte, cuja electrificação ou re-electrificação está até prevista de modo a comportarem o mesmo standard que o português – 25.000 volts.
O caso galego é relevante não apenas porque nos assegura da manutenção da bitola, como indica caminhos a seguir: em itinerários onde a velocidade é fundamental ou a saturação de itinerários existentes recomenda segregação de tráfegos rápidos e lentos, há uma linha de alta velocidade em bitola europeia, ao serviço exclusivo do parque de comboios de alta velocidade. Em tudo o resto, agem nas grandes variáveis da competitividade: os traçados, a sinalização e a electrificação. Traçados corrigidos ou feitos do zero (a linha Vigo – Corunha foi feita quase a partir do zero no início do século), novos sistemas mais eficazes de sinalização e controlo de tráfego (com adopção do standard europeu ERTMS) e um sistema de electrificação comum com Portugal.
O artigo de Henrique Neto e Mário Lopes tenta ainda explicitar a possibilidade de comboios lentos circularem nas linhas de alta velocidade puras, estabelecidas em bitola europeia, ignorando dois factos importantes:
• A maioria delas situa-se em eixos onde a sua construção foi motivada pelo desejo de segregar tráfegos e onde a partilha da via com comboios pesados e lentos motivaria uma grande perda de capacidade e performance na linha de alta velocidade;
• Que nas linhas actualmente exclusivas a passageiros não apenas os parâmetros associados aos declives contam – desde logo, a escala das curvas (o quão “inclinados” ficam os carris para compensar a força centrífuga nas curvas) representa uma resistência ao avance demasiado grande para comboios lentos ou pesados, reduzindo em muito a sua capacidade de carga – não é a mesma coisa circular por curvas “inclinadas” a 300 km/h ou a 100 km/h, já que os atritos roda-carril se alteram substancialmente, com claro prejuízo para as circulações lentas. Por exemplo em Portugal, existem troços da linha do Norte onde os comboios pendulares não circulam mais rápido apenas porque para tal seria preciso aumentar a escala das curvas, o que prejudicaria desde logo os comboios de mercadorias e, como tal, inviabilizando essa hipótese.
Como creio que esta insistente posição parte acima de tudo factos errados ou incompletos, acrescento ainda o que é a grande esperança europeia para transitar camiões, literalmente, para os caminhos de ferro: os comboios de transportes de camiões. São as estrelas dos massivos êxitos de políticas públicas no centro da Europa e em particular nos eixos alpinos, onde os camiões inteiros ou os seus semi-reboques são carregados em cima de comboios adaptados para o efeito (e que podem até incorporar carruagens para o transporte dos motoristas), realizando longos percursos de comboio e evitando os constrangimentos logísticos dos sucessivos transbordos camião-comboio para obtenção da capilaridade. Não estarei longe da verdade se disser que, da grande maioria de tráfegos de detalhe que cruzam as nossas fronteiras de camião em direcção ao centro da Europa, este tipo de aposta for aquela de maior potencial até porque, na maioria dos casos, se tratam de muitos pequenos tráfegos cuja compatibilização em comboios específicos a cada tráfego seria dramaticamente difícil – é também desta noção que é preciso partir se queremos de facto tirar camiões das estradas.
No caso destes comboios, a fronteira das bitolas entre Espanha e França pode, de facto, ser um tema relevante. E também aqui, analisando as soluções que vão sendo adoptadas (a nossa “vantagem” de estarmos tão atrasados é vermos o mundo adaptar-se primeiro), vemos as plataformas no leste Europeu para transbordo automático de carga entre duas bitolas (a bitola russa também é diferente da bitola europeia) e vemos também que está já em projecto um terminal semelhante para a fronteira entre Espanha e França, uma aposta que não apenas pretende cortar os custos do transbordo como, no fundo, confirmar a continuidade da bitola ibérica, em grande parte pelos argumentos que anteriormente explicitei.
Não termino sem falar no comboio da DB Schenker, uma circulação efémera que virou mito em Portugal. Esse comboio transportava peças entre Braunschweig, na Alemanha, e Penalva ou Bobadela, em Portugal, e resultava de uma cooperação da CP Carga / Medway, Renfe e DB Schenker. Utilizava caixas móveis fáceis de manobrar e transbordadas no complexo ferroviário de Irun em poucos minutos, tendo terminado devido a constrangimentos ligados à falta de capacidade do itinerário Bordéus – Paris, em França, linha onde à época era muito difícil não apenas conseguir um horário competitivo como, em caso de atraso nos carregadores (não é raro…) conseguir um canal horário substituto que não perdesse muito tempo à circulação. Isso foi dito pelo director-geral da DB Schenker em Portugal, nessa altura, e pelo presidente da Medway, Carlos Vasconcelos, repetidas vezes.
De facto, temos muitos problemas para resolver: uma abrangência geográfica insuficiente, conexões fronteiriças deficientes (por exemplo, a linha da Beira Alta comporta declives 25% a 35% superiores aos existentes do outro lado da fronteira), vias principais saturadas (linha do Norte), sistemas de sinalização distintos (que obrigam a distinta formação de pessoal nos dois lados da fronteira e embarque de sistemas de protecção distintos nas locomotivas), entre muitos outros. Num meio de transporte com tantos problemas identificados em Portugal e que não consegue mais do que 2% de quota no tráfego com Espanha (sem mudanças de bitola!), parece claramente pouco avisado partir numa cruzada contra a bitola ibérica, ignorando factos fundamentais da transição espanhola (ou da não transição, maioritariamente).
Termino com uma nota positiva e um agradecimento público, que aliás já no passado fiz em espaços de menor audiência – é muito positivo que Henrique Neto e Mário Lopes recentemente tenham promovido a discussão sobre a necessidade de novas linhas. É isso que precisamos: novos traçados, variantes ao que existe. Precisamos de ir mais rápido, mais próximo das economias locais, com menores rampas e características de infra-estruturas mais uniformes. Só não precisamos é de romper a operação e de desviar para um objectivo periférico como o da bitola incontáveis milhares de milhões de Euros que tanta falta nos fazem nas coisas mais básicas para as quais também já alertaram.
Espero que o Plano Ferroviário Nacional que se anuncia possa finalmente representar um corte com o minimalismo das intervenções passadas e presentes e nos possa finalmente anunciar a rede com a performance que as ambições políticas das últimas décadas nos prometeram.
Prezado João Cunha
Tem um erro SUBSTANCIAL em todo o texto que desenvolveu e que é o seguinte:
Os defensores da construção, de RAIZ , da parte nacional do Corredor Atlântico em Portugal ( em bitola europeia e projectada para tráfego MISTO – comboios de passageiros e comboios de mercadorias), nunca pensaram em migrar de imediato a nossa actual e bi-centenária rede ferroviária de bitola ibérica, para a bitola europeia.
Defendemos sim é a EXISTÊNCIA SIMULTÂNEA EM SERVIÇO, por um período de décadas, de duas redes ferroviárias de bitolas diferentes em Portugal , a nossa actual em bitola ibérica e uma outra nova, a construir de raiz ( custo 11.500 Milhões €, a serem co-financiados a 60% pela Comissão Europeia), a construir de acordo com o desenho que consta no CEF, ( ver mapa dos 9 corredores trans-europeus ( durante um período de 10 anos e cumprindo com todas as especificações que constam do Regulamento 1315/2013 da U.E. (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=LEGISSUM:3207_1).
Assim o trabalho da construção, de RAIZ, iniciar-se-ia pelo Corredor Internacional Sul, Sines/Lisboa-Poceirão-Caia , por ter já um Projecto de Execução do consórcio ELOS, e como o relevo é mais fácil, consequentemente tem menores custos (2.500 Milhões € ) . Para o serviço de passageiros ( o célebre TGV ), na ligação Madrid-Lisboa, utilizar-se-à a existente Ponte 25 de Abril, por comboios Talgo de eixos telescópicos, há décadas utilizados pela Renfe para fazer chegar a Paris os seus comboios .
A segunda ligação seria Leixões/Porto – Lisboa/Sines também para tráfego MISTO , independente da existente e saturada actual ( Custo 4500 Milhões € , não contando com a construção de uma nova ponte sobre o rio Douro). Esta construção NADA TEM A VER coma a solução que o Sr. João Cunha e o Sr. Costa e Silva DEFENDEM, pensando que poupam, em que utilizam fracções da actual via, parecendo desconhecer os milhares de milhões gastos e enterrados nos últimos anos na sua , dita, RENOVAÇÃO , que praticamente em nada baixou o tempo de ligação Lisboa-Porto e, surpresa, continua em péssimo estado de utilização.
Finalmente o terceiro e o ultimo troço seria o Aveiro-Mangualde – Almeida ( não V. Formoso pois que tem uma enorme pendente, logo a seguir, em território espanhol), com um custo estimado de 4.500 Milhões € devido ao seu abrupto relevo.
Estas duas redes ,a existente e o novo Corredor Atlântico, atrás descrito, terão pontos de contacto em locais considerados chaves, para transferência de passageiros e/ou mercadorias.
Agradeço pois que reveja todo o seu raciocínio, à luz do que atrás lhe exponho e aponte, justificando, os meus possíveis erros .
Cumprimentos do seu concidadão
Mário Ribeiro
esta é uma boa informaçao para os projetos de medio prazo e não desperdiçando verbas em linhas já muito velhas.