Terceira Travessia do Tejo, já!

Terceira Travessia do Tejo, já!

5 Outubro, 2022 9 Por Joao Cunha

Portugal não gere bem obras públicas. Fizemos apressadamente itinerários principais (IP) quando já faziam sentido auto-estradas (AE), desdobrámos auto-estradas vazias, alcatroámos eixos onde a mobilidade não chegava a assustar em vias com o perfil de estradas nacionais. Na ferrovia, saltamos rápido para o comboio da renovação do traçado original, mesmo que seja para inaugurar uma renovação para comboios modernos rolarem a apenas 80 km/h.

No outro lado da balança, estão os investimentos produtivos. Tipicamente de maior escala, arrastam-se por décadas. O Alqueva demorou mais de 30 anos a ter o impulso definitivo para se concretizar e mudou por completo a vida do Alentejo e não só. O porto de Sines foi fundado em 1973, mas só a partir de 2004 com o investimento do porto de Singapura começou a receber investimento visível – até aí, diziam-nos, querer promover Sines era apostar num elefante branco.

Graças a este medo cénico de apostar em obras longas mas de efeitos territoriais muito mais profundos, estamos há 50 anos a decidir um aeroporto para Lisboa, conseguindo este triste espectáculo de em 2022 termos um intenso tráfego aéreo a cruzar os céus do centro da cidade, a baixa altitude, e um terminal aeroportuário que envergonharia muitos países africanos. Graças a ele, tentámos durante cerca de dez anos compor a linha do Norte Lisboa – Porto para ser algo que nunca poderia ser, até porque ter lá comboios a 220 km/h em 100% do traçado teria prejudicado ainda mais o tráfego lento – como o fundamental transporte de mercadorias – já de si bastante castrado actualmente.

Demorámos também 30 anos a decidir por o comboio na ponte 25 de Abril – um investimento tecnicamente ambicioso (até mais do que orçamentalmente) e que mudou por completo a vida da metrópole portuguesa.

O que é a Terceira Travessia do Tejo e como surgiu a ideia

A Terceira Travessia do Tejo é a ligação entre Chelas e Barreiro, que se soma assim à ponte 25 de Abril e à ponte Vasco da Gama. A ideia surgiu pela necessidade de ter uma ponte ferroviária a ligar as duas margens, sendo o primeiro projecto de meados do século XIX. Não se concretizando, o Barreiro tornou-se no grande terminal ferroviário de Lisboa para o Sul do país, graças ao que foi feita a estação ferro-fluvial no Terreiro do Paço, pela CP / Caminhos de Ferro do Estado, assegurando ligação fluvial ao terminal da margem Sul.

Inserção da TTT do lado de Lisboa, com representação dos viadutos de acesso. A obra que está a iniciar-se para quadruplicação da linha de Cintura incorpora os viadutos e túneis necessários para o futuro seguimento para a TTT.
Representação das inserções ferroviárias e rodoviária (a vermelho) do lado de Lisboa.
Inserção da TTT do lado do Barreiro, com menção a um hipotético Parque de Material e Oficinas no Barreiro (PMO).

A introdução da ferrovia na ponte 25 de Abril nunca foi concorrente a esta ideia, fundamentalmente pela densidade dos eixos de mobilidade em Lisboa – previa-se, como rapidamente aconteceu, que a nova ligação pela ponte 25 de Abril se saturasse apenas com o tráfego suburbano do corredor Coina – Seixal – Almada em direcção a Lisboa. Desde 2004, com a extensão da linha ao Pinhal Novo, também o Longo Curso utiliza esta ligação, evitando a origem no Barreiro, mas com o preço de saturar ainda mais esta ligação e de contar com tempos de viagem nada competitivos, dada a densidade do tráfego suburbano lento.

Nos anos mais recentes, a Terceira Travessia do Tejo surgiu a par com a instalação da ferrovia na ponte 25 de Abril, o que faz todo o sentido à luz do parágrafo anterior. De facto, data de 1995 o decreto-lei governamental que sinaliza e protege os corredores de implantação da ponte, julgada como essencial. Tal como o Alqueva ou o porto de Sines, esta ponte tem enfrentado os desafios de um grande investimento em Portugal – usado como arma de arremesso entre a corrupção faraónica de Sócrates e o Ferreira-Leitismo da velha direita.

Data de 2008 a definição final da solução, depois de um desempate de última hora com uma hipotética ponte Beato – Montijo – Barreiro (também estudada em versão túnel). O corredor Chelas – Barreiro apresentava as maiores vantagens:

  • Mais fácil conexão ferroviária com a linha de Cintura, quer em direcção a Sintra, como em direcção ao Oriente e ao Porto;
  • Implantação fácil do lado do Barreiro e interligação com a linha Barreiro – Pinhal Novo;
  • Serviço directo ao maior eixo de mobilidade da área metropolitana de Lisboa sem ferrovia pesada: Setúbal – Barreiro – Lisboa, corredor onde existe apenas a alternativa fluvial (para a Baixa da cidade, menos interessante nos dias de hoje) e um intenso tráfego rodoviário, com direito a grande desvio, para as pontes Vasco da Gama e 25 de Abril.

A solução final foi calculada como tendo um custo de 1.000 milhões de Euros se a ponte fosse só ferroviária, ou de 1.500 milhões de Euros se fosse rodo-ferroviária. No final, a ideia de contar com uma ponte rodo-ferroviária ganhou, compreensivelmente, o “concurso”. Hoje em dia, estima-se que este projecto rodo-ferroviário possa custar entre 1.700 e 1.800 milhões de Euros – meia TAP, até agora.

Ferroviariamente falando, a ponte previa duas linhas para tráfego urbano e de mercadorias e duas linhas para tráfego de longo curso, garantindo a capacidade necessária no atravessamento do Tejo.

Porque precisa Portugal da Terceira Travessia do Tejo?

Tal como em artigos passados em que falei da alta velocidade, neste artigo começo por elencar o que já é um prejuízo económico palpável por não realizar este investimento, antes de passar aos benefícios. Ao dia de hoje, já existe saturação em boa parte do dia no eixo Norte-Sul (via ponte 25 de Abril), impedindo, não exaustivamente:

  • Reforçar substancialmente a oferta suburbana, onde existe um fenómeno de sobrelotação há muitos anos;
  • Reduzir tempos de viagem dos comboios de Longo Curso;
  • Aumentar substancialmente a oferta de Longo Curso para o Sul do país;
  • Circulação de comboios de mercadorias, que circulam desviados pela linha de Vendas Novas e Coruche, mesmo que saiam de Lisboa em direcção a Sul.
Como seriam os viadutos de acesso do lado Norte à nova ponte.
Como se desagregariam os tabuleiros do lado do Barreiro. A azul são as linhas do Longo Curso – originalmente dedicadas à alta velocidade – e que podem na versão actual acompanhar as linhas a verde, para incorporação no eixo Barreiro – Pinhal Novo.

No capítulo dos benefícios, a nova ponte sobre o Tejo permite:

  • Encurtar o tempo de viagem para comboios de Longo Curso entre Lisboa e Pinhal Novo em, pelo menos, 30 minutos (é uma redução de 60% do tempo de viagem face à actualidade);
  • Possibilitar a ligação do corredor suburbano Barreiro – Setúbal a Lisboa, sendo um dos investimentos com maior potencial de transferência modal do carro para transportes públicos na área metropolitana de Lisboa;
  • Passar a fazer circular comboios de mercadorias via esta ponte, poupando em trajectos Sines – Lisboa (Bobadela) algo como 20 a 25% dos quilómetros percorridos, com evidentes ganhos de produtividade.
Corte da ponte na zona de maior altura e corte do tabuleiro, podendo ver-se as quatro vias ferroviárias em baixo e o tabuleiro rodoviário, em cima
As bonitas torres da nova ponte, juntamente com os tabuleiros, bem visíveis

O efeito local da nova ponte é ainda mais importante se observamos no seu efeito nacional, sendo especialmente relevante:

  • Lisboa – Évora, reduzindo de 1h30 para 1h de tempo de viagem, ou 55 minutos após renovação do troço Poceirão – Vendas Novas (que se iniciará proximamente) – 33% de redução;
  • Lisboa – Badajoz em 1h30, em vez das 2 horas que serão possíveis no final de 2023 – 25% de redução;
  • Lisboa – Faro em 2h30, em vez das 3 horas actuais – 17% de redução;
  • Lisboa – Faro em 1h50, em vez das 2h20 que permitirá o projecto mais ambicioso que existe no PNI 2030 para reformulação do traçado da linha do Sul, na zona da serra Algarvia – 21% de redução;
  • Lisboa – Madrid em 4h30 em vez das 5 horas que serão possíveis em 2024 – redução de 10% do tempo de trajecto apenas graças a 8 quilómetros de ponte, num trajecto total de 600 quilómetros;
  • Lisboa – Madrid em 3h30 em vez das 4 horas previstas quando Espanha completar a ligação de alta velocidade entre Madrid e Plasencia – 12,5% de redução;
  • Lisboa – Beja em 1h30 em vez das 2 horas previstas quando se completar a renovação da linha para Beja.

Todos estes ganhos de tempo são muito impressionantes dado que os 30 minutos de poupança em todas as ligações referem-se apenas ao conseguido com os 8 quilómetros a erguer entre as duas margens do Tejo – um dos maiores efeitos multiplicadores identificados no sistema de mobilidade de toda a península Ibérica.

Implantação da nova ponte, vista a partir de Santa Apolónia. A harmoniosa estrutura com dois tabuleiros lembra a ponte Vasco da Gama

Dada a importância de Lisboa para dar escala ao tráfego ferroviário, esta aproximação das duas margens do Tejo encurta significativamente o país, aproxima o litoral do interior e aproxima o Sul do Norte, permitindo que as intervenções ferroviárias a Sul do Tejo possam dispensar abordagens mais extremas – como a alta velocidade – para conseguir atingir tempos de viagem competitivos.

Note-se que 2h30 entre Lisboa e Faro, sem mais intervenções que não a TTT, já permite um tempo de trajecto que basicamente coloca o comboio no patamar da indiferença face ao carro, na altura de realizar a escolha modal. E que, após o investimento já previsto no PNI 2030, a TTT pode permitir que Faro fique a cerca de duas horas de Lisboa, sem alta velocidade, um tempo de viagem ultra competitivo e que dispensa futuras apostas em alta velocidade – a não ser que o tráfego cresça tanto que se justifique segregar tráfegos ferroviários, o que não é previsível no nosso tempo de vida.

Vista nocturna a partir do Panteão Nacional

Escolher a Terceira Travessia do Tejo também permite a Portugal dispensar nos próximos tempos a construção de uma linha de alta velocidade pura entre Lisboa e Badajoz. De facto, com toda a restante linha entre Pinhal Novo e Badajoz já apta a 220 (ou em vias disso, com obras no terreno ou em adjudicação), e com a entrada em Lisboa via Terceira Travessia do Tejo, os tempos conseguidos de Lisboa à fronteira (1h30) são inclusivamente melhores do que se fizéssemos uma linha de alta velocidade Poceirão – Caia com continuação pela linha existente via 25 de Abril, como chegou a ser preconizado.

Simulação da amarração no Barreiro, com desagregação dos tabuleiros.

A diferença para toda a região Sul, e por arrasto para o país, é a garantia de uma transferência modal nas deslocações suburbanas que não se consegue sem implantação do modo ferroviário, e é a garantia de que a aposta na evolução da rede convencional a Sul será suficiente para conseguir tempos de viagem super competitivos para que a ferrovia se imponha como escolha natural. Pelo caminho, o aumento de produtividade para o transporte de mercadorias e o serviço a um aeroporto na Margem Sul do Tejo são agradáveis suplementos.

Note-se que a Terceira Travessia do Tejo, com perspectivas de tráfego mais conservadoras do que as que hoje constatamos (a mobilidade está sempre a aumentar), era um investimento com taxa interna de rentabilidade positiva já em 2009, quer no cenário de aeroporto na Margem Sul (indutor de mais tráfego, naturalmente) como no cenário sem aeroporto.

Estimativa de rendibilidade da Terceira Travessia do Tejo, segundo avaliação custo-benefício realizado pela Steer Davies Gleave, em 2009
Como referido no artigo, o ganho de tempo via TTT é de tal forma enorme para distância tão curta, que gera impactos positivos na economia em escala perfeitamente incomparável com qualquer outro investimento que possa ser planeado a Sul de Lisboa. – fonte Steer Davies Gleave

A Terceira Travessia do Tejo Chelas – Barreiro mereceu Avaliação de Impacte Ambiental positiva em 2008, pelo que a recuperação do projecto dá confiança suficiente para que seja rápida a passagem a contratação de obra. Se o objectivo for até 2030 termos uma ligação Lisboa > Sul e Lisboa > Madrid competitivas, 2023 tem de ser o ano de novos desenvolvimentos.

Vamos esperar que a TTT se transforme num processo similar ao aeroporto ou vamos já agarrar esta oportunidade de desenvolvimento? Chega deste tabu!