
Análise crítica ao artigo do prof. Joanaz de Melo
No Observador, João Joanaz de Melo e Eduardo Zuquete assinam um artigo chamado “O Plano Ferroviário – mais exploração, menos construção” onde, na minha perspectiva, existe uma mistura errada de conceitos e são repetidas algumas mistificações que têm, ao longo dos anos, sido apresentadas a favor de uma “moderação” de investimento em infraestruturas ferroviárias, como se uma certa ambição mínima pudesse ser já um programa faraónico. Algumas dessas coisas têm sido apresentadas em planos de investimento, com grande prejuízo para a nossa rede ferroviária, o que mostra ser importante rebater alguns desses pontos, dado que eles efectivamente têm conseguido tracção política.
- o desdém pela alta velocidade: em geral, o meu comentário está coberto por este artigo que publiquei há algum tempo – Alta Velocidade em Portugal, já! – Planeamento e Operações (portugalferroviario.net)
- É para já falso que se possa falar numa primeira fase Porto – Souse e não Porto – Carregado, pois a divisão entre os dois troços, pelo que é dito e é razoável, é apenas para não paralelizar totalmente a construção, o que pode ser difícil de um ponto de vista de capacidade no sector da construção;
- A solução de automotoras pendulares a 160-220 km/h ignora vários pontos, mas o primeiro deles é precisamente a falta de capacidade na linha do Norte. Que entre Porto e Lisboa têm de existir duas linhas de via dupla cada uma, não é um capricho – é uma urgência crítica. E como digo no meu artigo, é mais fácil e barato construir uma linha só para passageiros, que já não se fará para velocidades abaixo de 250 km/h por tal não fazer sentido.
- Em geral, tudo o que não seja colocar o comboio pelo menos 30% abaixo do tempo de viagem por meio rodoviário é impedir competitividade suficiente para que se possa efectivamente ganhar quota de mercado. Isso será também algo a ter em conta para eixos como Porto – Braga – Vigo, Lisboa – Faro ou até correcções à volta dos eixos da Beira Alta e Beira Baixa. Tudo isto exige, à partida, investimentos volumosos e contrários à “moderação” dos investimentos mínimos – nenhum investimento mínimo alcançará isso, e está bem estudado;
- A estruturação em torno do litoral é uma inevitabilidade até ambiental – como poderemos fazer uma mudança modal suficientemente alta, se não dermos essa capacidade onde está mais de 80% da nossa população, que é o litoral? Não haverá quem esteja mais contra este modelo territorial do que eu (haverão certamente muitos tão contra como eu), mas lutar contra a realidade do terreno não é possível;
- Por fim, acho incompreensível que se fale do exagero sobre a vocação do comboio para transporte de mercadorias em Portugal – um país que apesar de ter tudo contra si está, neste particular, relativamente perto da média europeia. Que enche papers académicos produzidos dentro e fora do país com as inovações de exploração (que até são o ponto do artigo!) que têm tornado viáveis jornadas muito curtas.
- Julgo que a menção às triagens aponta para conceitos ultrapassados de análise desta problemática. Uma triagem ferroviária de mercadorias tem uma área de influência similar a um grande porto marítimo, o que o mesmo é dizer que Portugal terá uma e Espanha 2 ou 3. O que é verdade. O resto é beneficiado pelas muitas fórmulas de exploração existentes por cá e que têm produzido resultados. Precisamos de infraestrutura para conseguirmos levar mais camiões para o comboio – o impacto ambiental do transporte rodoviário de mercadorias é muito grande e será sempre muito superior ao do meio ferroviário, dada a intensidade energética de escala incomparável.
Não estamos em ponto de ignorar o que décadas a bater com a cabeça na parede já nos ensinaram – não vamos conseguir ganhos importantes melhorando marginalmente o que existe. Não existirá também muita gente neste meio mais ligado à operação e que atribua mais importância à operação, mas o que temos em cima da mesa não se resolve fundamentalmente a partir daí, desde logo porque actualmente a operação não tem capacidade disponível para poder ampliar operações, torná-las frequentes, sincronizadas e cadenciadas, por exemplo.
Se por hipótese Portugal passasse a dedicar 0.5% do seu PIB a infraestruturas ferroviárias nos próximos 27 anos, alcançaríamos um esforço superior ao que é exigido pelo PFN em discussão (que considero pouco ambicioso…), e substancialmente inferior ao que foi sendo executado na rodovia em Portugal, só olhando ao período pós-construção dos Itinerários Principais no final dos anos 80 e início dos anos 90.
Nem o Plano Ferroviário Nacional é faraónico nem a exploração fará milagres com mais investimentos de melhoria marginal. Estes são, tipicamente, desperdícios de dinheiro, na linha dos muitos pequenos investimentos feitos na nossa ferrovia nos últimos 20 anos.
Por exemplo, de que servem algumas correcções de traçado e a electrificação na linha do Oeste, se entre Torres Vedras e Lisboa vamos continuar a demorar mais 40 ou 50% do tempo do que o autocarro, quando o comboio devia era estar 30% abaixo?
Só virar a mesa nos entregará caminhos de ferro à altura do que os desafios ambientais e económicos nos colocam.