Onde bloqueiam as obras ferroviárias?

Onde bloqueiam as obras ferroviárias?

4 Abril, 2023 0 Por Joao Cunha

Neste texto corro alguns riscos de análise que habitualmente prefiro não correr, mas à falta de uma auditoria forense ao Ferrovia 2020, acho mais importante trazer a visão que tenho do que são os bloqueios para os planos de investimento que recorrentemente falham em prazos, em âmbito, em entrega… algum erro de análise será muito provavelmente pequeno e compensa a discussão que daqui possa surgir.

Vem isto a propósito de mais um inevitável atraso, agora no Plano Nacional de Infraestruturas 2030, na componente ferroviária, quando nem o Ferrovia 2020 está completo. Para ler aqui: Governo falha metas do PNI 2030 nos projectos ferroviários | Comboios | PÚBLICO (publico.pt)

O aspecto organizacional

O sistema está feito para falhar. Esquecido nas prioridades governamentais está o realinhamento institucional do sector, onde a componente de projectos merece, num sector de infraestruturas, um destaque importante e eventualmente segregado.

Não é prática fazer o tratamento dos programas anunciados como um todo, portanto para cada projecto ou subprojecto é preciso iterar em cima de um processo que é mais ou menos este:

Há vários aspectos que saem já daqui:

  • É a IP que lidera as propostas de evolução do serviço ferroviário em Portugal, ao ser a líder exclusiva (na prática) da avaliação e proposta proactiva de evoluções nessa rede;
  • É a IP que lidera todas as “streams” de acção fundamentais para tornar exequível um projecto:
    • Tem de liderar os estudos de custo-benefício, para orquestrar e dirimir os financiamentos comunitários em Bruxelas;
    • Tem de disputar com o ministério das Finanças (o verbo escolhido não é inocente) autorizações de despesa, uma a uma, não apenas para um projecto, mas para cada fase de projecto – a realização do projecto e posteriormente a sua implementação;
    • Tem de orquestrar a contratação dos projectos e da execução, qualificando fornecedores e por aí fora. Não é visível no fluxo, mas também é a IP que orquestra a fiscalização das obras, dado que não possui meios internos para isso;
    • Tem de instruir o processo de avaliação ambiental, para submissão na APA.

Na realidade, o Estado com isto o que faz é entregar o tudo e o nada à IP. Com excepção das componentes de projecto, execução e fiscalização, em tudo o resto o essencial do trabalho cai na esfera de outras organizações do Estado que, apesar dos projectos serem determinados como prioritários pelo poder político, têm uma posição totalmente passiva – ou activamente contrária, como as Finanças, muitas vezes.

Para se perceber o que me parece ser um fluxo mais equilibrado e lógico, protegendo o interesse público, a vitalidade das políticas públicas e a capacidade de efectiva implementação, isto é o que me parece fazer sentido:

A estrutura de missão é provavelmente mais fundamental hoje do que era há 30 anos, quando o governo de Cavaco Silva criou estruturas que ficaram célebres como o Gabinete do Nó Ferroviário do Porto (ponte São João, renovação de Campanhã, novas oficinas de Guifões e Contumil, etc) e o Gabinete do Nó Ferroviário de Lisboa (renovação e quadruplicação da linha de Cintura e de Sintra, renovação da estação do Rossio e Cais do Sodré, etc).

É mais fundamental porque hoje em dia existem dificuldades maiores no caminho – a contratação pública tem regras mais apertadas (e bem), a análise ambiental reveste-se de outra sensibilidade e o poder de intervenção das Finanças é maior. Perante isto, em vez de se criarem estas estruturas, com participação das entidades subsidiárias ao programa, está-se a colocar todas as responsabilidades numa única entidade, a IP. Perante maiores obstáculos, menos colaboração dentro do Estado. Faz algum sentido?

É por isso que digo que o sistema está montado para falhar. Sou insuspeito de isentar a IP de responsabilidades, mas como pode uma empresa com âmbito tão diverso ficar responsável única por programas de investimento que o poder político diz serem prioridade da nação? Não admira que a administração acabe por ficar capturada pelos projectos, deixando à margem ou até mesmo desprezando outros tópicos muito importantes da gestão quotidiana da rede.

O aspecto financeiro

Adicionalmente ao atrás mencionado, é inevitável destacar que o processo orçamental é digno do início do Estado Novo e as Finanças representam hoje, na orgânica do Governo, um papel mais interventivo que o próprio primeiro-ministro. Em vez de servir fundamentalmente para assegurar controlo de contas partindo dos planos dos vários ministérios, o ministério das Finanças comporta-se como o ministério que tudo planeia, tudo executa e tudo controla.

No aspecto dos programas de infraestruturas é preciso agilizar processos e colocar os ónus de responsabilidade onde eles devem estar. Recorro ao exemplo do PNI 2030, onde o Governo em funções determinou que durante dez anos faz sentido o país colocar 10.000 milhões na ferrovia, a maioria dos quais provenientes da União Europeia.

Posto isto, o que há a fazer é cabimentar orçamentalmente todo o programa, no seu conjunto, e incluindo a parcela que venha da União Europeia. Depois, a IP ou uma estrutura de missão, terá a obrigação de assegurar os pressupostos da execução do programa (garantir a % de fundos europeus, garantir a viabilidade ambiental, entre outras), e cumprindo com esses pressupostos pode dispor no imediato dos fundos já pré-cabimentados. Qualquer morosidade introduzida neste ponto, depois de garantidos os pressupostos de orçamentação do programa, são um dano terrível ao desenvolvimento do país ou, então, a orçamentação apresentada inicialmente era apenas uma brincadeira.

Em qualquer dos casos, a revisão de processo orçamental aplicada a programas de investimentos é fundamental, até para que o povo português deixe de comer gelados com a testa quando os governos em funções eventualmente estiverem a “brincar”.

O sector da construção e de projecto

Quanto a mim, o tópico menos relevante de todos é aquele tópico que já foi assumido como um dos pontos a motivar as dificuldades de execução do Ferrovia 2020 – sem surpresa, pois é aquele onde os políticos de turno não têm responsabilidades imediatas.

É de facto verdade que recuperar capacidade é complicado, demora tempo, e depende também do vislumbre de um pacote de investimentos constante, que justifique o aumento de capacidade. É isso que paulatinamente está a acontecer em Portugal.

O que é absolutamente vital aqui intercepta, na realidade, os pontos 1 e 2 deste texto – se não existir uma orçamentação previsível e com montantes de investimento estáveis, nunca existirá capacidade sustentável no sector, o que pode provocar oscilações nos projectos e na sua execução, a exemplo do que se tem passado com o Ferrovia 2020. Este factor é agravado pelo facto do país já não ser hoje atractivo para a importação de grandes massas de trabalhadores, pelo que também do lado dos recursos humanos o sector tem de viver agora numa realidade muito mais planeada e previsível.

No fim de contas, a saúde ou falta dela neste capítulo resulta primeiro de acções estratégicas no nível governamental, e a melhor ou pior resposta aqui, a jusante, será função dessas acções – e omissões.