A quebra do papel social dos caminhos de ferro

A quebra do papel social dos caminhos de ferro

22 Julho, 2023 0 Por Joao Cunha

Os sinais não são recentes e a relativa centralidade política dos caminhos de ferro até os sublinhou nos últimos anos – para quem os quisesse ver. Sendo um meio tão fechado, pouco dinâmico e tão dirigido politicamente, não faltam nas estruturas públicas centenas de grandes profissionais que há muito alertam para causas estruturais que vêm crescentemente desaguando numa degradação quase irreparável do papel social dos caminhos de ferro em Portugal.

As políticas públicas são originadas de diversas formas que mais generalistas cientistas políticos poderão detalhar com competência, mas uma das principais forças para obter uma prioridade em política é estar presente na vida do cidadão comum. Isso tanto pode ser pela positiva – a ideia de que algo acrescenta valor (ou facilita) à vida de uma pessoa – como negativa – algo que se queira evitar por degradar a vida colectiva.

É com absoluta estupefacção que vejo uma despreocupação olímpica perante a catástrofe que assistimos nos caminhos de ferro. Talvez por estarmos num país de pessoas poucas livres ignoram-se os dados objectivos e há muito quem se agarre a apaixonadas declarações ou a meras cartilhas partidárias para ignorar o que é por demais óbvio – podem até estar presentes todas as boas intenções possíveis e imaginárias ao serviço de uma ideia de desenvolvimento deste sector, mas o resultado final é um desastre. E pode ser um desastre por muitos motivos: falta de capacidade de concretização, falta de competência, falta de profissionalismo, simples mentira nos objectivos políticos, entre muitos outros.

Alguns factos da maior gravidade

  • Em 2023, a CP já suprimiu mais de 13% das suas circulações. Devia ser inferior a 1%. Railways.pt | Estatísticas
  • Em 2023, nos serviços interurbanos, a CP apresenta uma pontualidade de entre 67% no Longo Curso (o segmento onde ganha dinheiro!) e 84% no Regional. Railways.pt | Estatísticas
  • A quota modal ferroviária em Portugal conheceu a maior queda desde que há estatísticas. De 2020 para 2021, a quota modal caiu de 14,2 para 10,7% Statistics | Eurostat (europa.eu)
  • Como sabemos, estamos a acabar 2023 e o Ferrovia 2020 nem a meio vai A que velocidade anda o Ferrovia 2020? | PÚBLICO (publico.pt)
  • Não houve ainda adjudicação dos 117 comboios da CP, onde estão por exemplo os 34 comboios que permitirão trocar a electrificação de Cascais (cujas obras já decorrem);
  • A dívida da CP ainda está por finalizar reestruturação;
  • Desde 2020, então devido a Covid-19, que Portugal não tem ligações internacionais de passageiros com Madrid ou com a fronteira francesa, ligações essenciais até para a soberania nacional;
  • O Plano Ferroviário Nacional continua sem ser apresentado e votado no Parlamento;
  • Infraestruturas de Portugal sem renovação de certificado de segurança – Infra-Estruturas de Portugal esteve a operar sem autorização de segurança | Comboios | PÚBLICO (publico.pt).

Algumas promessas – propaganda? – articuladas nos últimos anos

Uma degradação profunda num mar de aparências

Das duas secções anteriores a maioria dos leitores já terá certamente muitas conclusões na sua cabeça. Para quem possa estranhar a tremenda dissonância que persiste entre realidade e mensagem política, recordo que de 2017 a 2018 se viveu um estado de negação total – também dentro das empresas públicas – até que houve “ordem de soltura” e se rompeu a muralha de silêncio para se assumir o que ia mal. O ministro Pedro Marques, nessa altura, durou poucos meses até ser chutado dali para fora, mas até chegar esse ponto de rotura parecia que só meia dúzia de malucos andavam a “instigar” maledicência nas redes e nos jornais. Recorde-se que na altura linhas como o Algarve, Oeste ou Douro conheciam supressões da ordem de 50% das circulações diárias, sem que isso comovesse corjas partidárias ou que promovesse suficiente coragem para que o próprio sistema ferroviário perdesse a vergonha e viesse fazer a denúncia na “primeira pessoa”. Estamos outra vez numa dessas fases.

Quero destacar que nem tudo me parece estar a degradar-se. Crítico feroz da Infraestruturas de Portugal nos últimos anos, reconheço que a empresa está finalmente a capacitar-se em várias frentes para poder ser a executora de projectos fundamentais na nossa rede, com um ritmo de execução a subir sustentadamente. Os últimos projectos conhecidos já denotam um profissionalismo e preparação que dá garantias, o que até tem permitido uma certa redução de uma veia propagandística que sobrou da era Pedro Marques. Abrimos o site da Infraestruturas de Portugal e vemos também grandes diferenças face à CP – podia começar na comunicação, mas vou directo à página de ofertas de emprego. Enquanto a IP tem dezenas de vagas abertas um pouco para todo o lado, na CP até parece que estamos perante uma empresa com efectivos suficientes para a oferta que tem.

Nem tudo são rosas na IP. Pode ser que a capacitação de meios humanos em curso permita retomar alguma excelência perdida na gestão da rede e não nos esqueçamos dos passivos de segurança institucionalmente cobertos nos últimos anos – de que a rábula inacreditável da renovação do certificado de segurança é a mais clara e preocupante imagem.

Há um enorme passivo a recuperar no lado das mercadorias, fruto de erros monstruosos no Ferrovia 2020, muitos dos quais originários de sub-orçamentações disfarçadas politicamente e que acabaram a atirar obras importantes para cenários de enorme disrupção no tráfego. O Gaia – Espinho há quatro anos que prejudica gravemente a competitividade do transporte ferroviário e soma interdições nocturnas em catadupa. A linha da Beira Alta está sujeita mesmo a um encerramento que vai para dois anos e regressará com poucas novidades nomeadamente no que toca a velocidades e inclinação de rampas, os factores mais críticos para a competitividade de passageiros e mercadorias. Pelo caminho, um custo totalmente desconhecido que é o tempo que demorará a recuperar o tráfego que existia (já de si magro, dados os problemas que a linha somava) e um trambolhão inédito do transporte de mercadorias em Portugal por via férrea, de 14% de quota modal em 2020 para 10% em 2021 ou, vendo por outro lado, de 85% da média europeia para apenas 65%. Nunca se viu uma regressão destas e não é desculpável com o fim dos comboios de carvão, dado que esses já não circularam em 2020. A indisponibilidade da rede é um custo não introduzido nos planos de negócio dos novos investimentos. Será que é mais barata esta indisponibilidade do que, por hipótese, ter gasto 20 ou 30% mais em métodos de intervenção mais complexos ou mais variantes de traçado, com menor impacto nas linhas existentes e em serviço? Também aqui, IP e Governo continuam a decidir de dedo no ar.

A quebra histórica no tráfego de mercadorias nem tem nestas estatísticas ainda a representação do fecho recente da maioria dos terminais de contentores da Bobadela, considerando o melhor terminal rodo-ferroviário da Península Ibérica e que fechou ao abrigo de um sinistro acordo entre primeiro-ministro e autarcas, sem escrutínio público, cujos impactos em 2022 e 2023 foram e são brutais e que degradam ainda mais a performance e atractividade da ferrovia face à estrada. Uma das críticas feitas ao Ferrovia 2020 é que “só” promovia o transporte de mercadorias, e este Governo vai conseguir a proeza de fazer um plano “só” para promover mercadorias que resulta num corte de pelo menos um terço da sua quota modal – quando o objectivo a que Portugal se compromete na UE é de mais do que a duplicar!

Mas a grande ameaça ao futuro dos caminhos de ferro em Portugal está mesmo na CP – e tanta gente minha amiga ou conhecida que tenho lá, que admiro e que respeito, sabe perfeitamente o quanto me custam escrever as linhas que se seguem.

Desde meados de 2022, as greves voltaram em força e perante uma indiferença política que nunca existiu. Até no tempo da Troika foi possível assinar um acordo de paz social na empresa que durou praticamente dez anos, e a isso foi dada prioridade. Ao fim de quase um ano, a CP lá conseguiu um acordo com 15 de 16 sindicatos, mas há sempre mais um. A greve dos revisores está a por em causa a CP e os caminhos de ferro em Portugal, mas também há muito por explicar – por exemplo a semana passada diziam-nos haver um acordo alcançado e à espera de confirmação no governo (Reunião entre CP e sindicato dos revisores inconclusiva: para já a greve mantém-se – Expresso), para ontem nos dizerem que afinal a CP rejeitou a proposta do sindicato (CP recusa proposta de sindicato e anuncia acréscimo salarial extraordinário na primeira semana de agosto – Expresso). Admito que haja uma excelente explicação para isto, mas a CP não é uma empresa pública diferente das outras, e portanto também não temos transparência sobre o que se passa.

As greves têm sido marcadas pela total aleatoriedade. Os seus termos implicam que boa parte dos comboios suprimidos não possam ser previstos com mais de meia dúzia de horas de avanço. Pior que as greves totais previsíveis e com serviços mínimos decretados, as greves que em 2023 já somam mais de metade do ano (mais de 100 dias!) criam o maior caos e a pior de todas as dúvidas nos potenciais passageiros – será que o comboio vai circular? Posso confiar no horário? Estarei condenado a ficar longe de casa?

As marcas deste período são óbvias na Auto-estrada número 1. As filas de autocarros são inéditas no nosso país e os transportadores que se somam constantemente batem recordes de facturação e de procura neste quintal que anuncia toda a prioridade à ferrovia. Passando pelas redes sociais, vemos centenas de pessoas a trocar comboio por autocarros, muitas que sempre se manifestaram a favor da preferência pelo comboio.

A única coisa que verdadeiramente melhorou na CP foi a disponibilidade de material, mas isso foi à custa da recuperação de material velho. Foi a medida certa e inevitável (eu próprio a tinha escrito ainda durante o manto de silêncio em torno da gestão de Pedro Marques!), mas não podemos dourar a pílula – não deixa de ser material velho e que não, não está a ser renovado em moldes similares aos conhecidos em outro material antigo que circula por exemplo na Suíça. Se uma carruagem Schindler de 1948 está óptima para um serviço semi-turístico no Douro, também é verdade que as carruagens idênticas dos anos 1950 que ainda circulam na Suíça, fazem-no com informação ao passageiro, ecrãs, ar condicionado, insonorização reforçada e por aí fora…

Por falar em disponibilidade de material, a falta de renovação das 0450 continua a condenar Alentejo e Algarve a um serviço ferroviário de terceira categoria, com imensas incidências que se somam às greves, e unidades até limitadas na sua velocidade máxima por falta de condições de segurança. Ao mesmo tempo isso não parece incomodar a CP, que em vez de renovar o aluguer das automotoras 592 da Renfe (por muito caro que seja!), continua a enviá-las de volta, preferindo manter os “mouros” com aquelas inenarráveis automotoras cuja fiabilidade há anos que é inaceitável. Se não é possível renová-las novamente, não podemos ao menos ficar com o material da Renfe? Já nem falo nas pobres 0350 do serviço da linha do Leste… entre autocarros chamados para socorrer o comboio no meio da planície ou para levar passageiros devido às falhas do ar condicionado, há de tudo. Só não há é desconhecimento.

De resto, a CP parece ter escolhido como core business a reparação de comboios, mesmo apesar das entradas para as oficinas estarem bem abaixo do necessário (veja-se a recuperação das carruagens Arco). Uma pequena viagem pelo perfil de LinkedIn da CP mostra-nos muita coisa, mas pouco relacionado com o core business real – transportar pessoas nos serviços de cariz público. Talvez faça sentido pensar numa reformulação dos valores e missão da empresa, que parecem desactualizados: A Empresa | CP – Comboios de Portugal

Eu não duvido que a administração da empresa esteja a travar uma luta ciclópica por colocar a empresa nos eixos. Não duvido que hajam directores, técnicos, maquinistas, revisores, operários e muitos outros na empresa que queiram estar numa empresa ferroviária de topo e com futuro. Mas como às vezes os casos de estudo na gestão e gestão estratégica nos ensinam, às vezes até podemos ter todos os ingredientes de qualidade reunidos e não se conseguir fazer um bom prato. As idiossincrasias próprias e à sua volta, o dirigismo político e a complexidade do esquema tutelar e a falta de uma real política de gestão de recursos humanos (em todas as empresas públicas, aliás) pode simplesmente tornar inviável uma empresa.

Já aqui escrevi que, independentemente de méritos e motivos, não é normal uma empresa ter este grau de conflitualidade laboral. Até podemos encontrar culpas específicas aqui e ali, mas é a “big picture” que interessa.

Eu julgo que a CP não é recuperável como está. Em primeiro lugar, com a finalização da reestruturação da dívida o Estado devia seriamente considerar transformá-la numa sociedade anónima, de capital 100% público. E é preciso pensar qual é a reforma necessária nesta empresa, acreditando eu cada vez mais que dividi-la em segmentos de tráfego será o ideal. Separar já áreas urbanas do resto pode ser o começo de um melhor serviço nas áreas onde o caminho de ferro mais diferença fará até para os objectivos ambientais que temos como país.

Certo é que nada pode ficar como está. O sector vive de imagens de comboios turísticos, de marchas de ensaio de material velho recuperado e de powerpoints sobre incontáveis projectos de incorporação nacional ou de infraestruturas mas, no terreno, a fuga da população é óbvia – fogem de um meio de transporte que não é fiável, não é confiável e não é certo, mesmo que isso implique passarem quase 4 horas numa lata de conserva entre Lisboa e o Porto. Isto não é um “abre-olhos” suficiente?

É fundamental fazer isto em primeiro lugar por quem trabalha no sector. É um sector de gente especializada, de enorme valor acrescentado, e com orgulho no que faz. De gente preocupada e que quer que os caminhos de ferro assumam preponderância e sirvam o país. O estado actual tem apenas gerado frustração e salários muito mais baixos do que na maioria dos outros sectores da economia – a sangria de recursos humanos vai, por isso, continuar.

Desculpem-me mas não consigo mais fingir que não vejo. A Fertagus funciona, o Metro do Porto funciona, a Renfe funciona, a Trenitalia funciona, até a SNCF funciona. Façam o que quiserem, mas a concessão dos caminhos de ferro portugueses tem de estar com quem souber operar um serviço de excelência. Estamos fartos de migalhas levadas pelo vento.