
250 ou 300 km/h?
Parece que teremos, por fim, o lançamento do primeiro curso para a alta velocidade – no caso, o troço Oiã – Porto. O Dinheiro Vivo apanhou um detalhe interessante sobre o processo preparatório – um último estudo de viabilidade com a eventualidade de limitar a velocidade a 250 km/h e permitir a circulação de comboios de mercadorias – IP lança a 15 de janeiro primeira fase da alta velocidade Lisboa-Porto (dinheirovivo.pt)
O que está em causa?
A linha de alta velocidade será construída com uma parceria público-privada, em regime de concessão para construção e exploração durante 25 anos desta infraestrutura, integrada na rede ferroviária nacional. Desta forma, a entidade pública que controlará esta concessão do ponto de vista financeiro e legal é a UTAP – Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos, competente entidade estatal que monitoriza todas as parcerias público-privadas das áreas dos transportes ou saúde, para dar dois exemplos.
Além do modelo contratual, é importante validar economicamente este projecto, condição importante para a garantia dos apoios comunitários (mais de 700 milhões só para este primeiro troço). E isto implica não apenas provar existir um custo-benefício positivo na opção projectada, como também garantir que se estudam todas as formas de maximizar o benefício social e financeiro do empreendimento.
A essa luz, é normal e faz parte do processo de consolidar o lançamento deste projecto que sejam estudadas alternativas para ampliar procura ou diminuir custos de exploração em cima do projecto que já existe. Fundamental reter esta parte – em cima do projecto que existe. Ou seja, o traçado não vai já mudar (está validado já pela APA).
O que se pretende garantir é que a formulação final, presente no caderno de encargos do concurso a abrir, é a que maximiza o benefício social e financeiro – pelo que a IP está a estudar se um cenário de exploração parecido ao previsto para o Évora – Caia pode aumentar transversalmente os benefícios gerados, directa e indirectamente, por esta infraestrutura.
De que forma pode então o projecto mudar?
Dado que a implantação da linha não pode já mudar, não mudarão alguns aspectos cruciais para se entender o que está a ser estudado:
- O traçado em planta manter-se-á: os raios de curvatura, os locais de implantação do traçado;
- O perfil longitudinal da via: as pendentes e rampas do percurso e respectiva inclinação;
- Genericamente, todos os elementos que fazem parte da solução de construção civil como obras de arte (ferroviárias, rodoviárias, hidráulicas, etc), trincheiras, taludes e outras.
Deste modo, o que pode ainda ser sujeito a uma alteração é a própria colocação da via e o seu impacto nas condições de circulação.
Para um mesmo raio de curvatura, a velocidade permitida depende fundamentalmente da escala da curva – ou seja, o perfil transversal da via – a diferença de altura entre o carril interior e exterior da curva – a inclinação da via. Essa inclinação serve para reduzir a força centrífuga sobre o comboio, que é um parâmetro que influencia a segurança da circulação e o conforto a bordo. Tipicamente, a velocidade é fixada pelo critério de conforto, que exige uma influência da força centrífuga substancialmente mais baixa do que o patamar exigível do ponto de vista de segurança. É exactamente por isto que os comboios pendulares podem circular a maior velocidade – porque fisicamente é possível circular mais rápido, e a inclinação da caixa dos comboios ao entrar em curva compensam a insuficiência de escala que a via tem para a velocidade praticada.

Assim, dado que o traçado já não mudará, a opção entre colocar a via para circulações a 300 km/h ou a 250 km/h tem várias implicações, mas a primeira de todas é precisamente a escala das curvas. Para os 300 km/h, a escala é superior para permitir todo o conforto a bordo a essa velocidade, ao passo que para 250 km/h essa escala será menor, dado que estamos num cenário de invariância do raio de curvatura. O segundo cenário é exactamente o escolhido para a linha Évora – Caia, onde se prevê desde o início a coexistência de comboios de mercadorias e de passageiros.
A escala necessária para circular a 300 km/h é incompatível com a circulação de comboios de mercadorias a 100-120 km/h, pois essa é uma velocidade demasiado baixa para tamanha inclinação – o que acontece é que o comboio em vez de circular fundamentalmente com as rodas “no meio” dos carris, ele estará na realidade todo “deitado” em cima do carril interior – aumenta desgaste, e o desgaste é causado por algo crítico para a operação dos comboios de mercadorias: o muito maior atrito, dado que existirá uma secção maior das rodas em contacto com os carris, incluindo o verdugo – a saliência interior das rodas que, em caso limite, impede o descarrilamento. Ora este atrito superior aumenta muito a resistência ao avance, o que no limite pode determinar que o comboio de mercadorias não consegue continuar o seu percurso ou é sujeito a uma limitação de carga muito grande. Além do mais, para comboios de mercadorias com líquidos, a inclinação pode até propiciar derrames no caso de terem topos abertos para carregamento da mercadoria.

Assim, num mesmo raio de curvatura, baixar a velocidade para 250 km/h permite uma escala de curva mais reduzida, reduzida a ponto de viabilizar perfeitamente a circulação de comboios lentos sem este problema acima abordado.
É fundamentalmente isto que pode mudar, não mais.
Que implicações e que viabilidade podem ter opções alternativas?
Simplificando, a redução de velocidade implica mais 15 minutos entre Lisboa e Porto, ou 1h34 entre Lisboa e Porto (ou 1h30 se for feita a linha nova entre Lisboa e Carregado, o que não está previsto). De um ponto de vista de procura de passageiros, assinalo que isto passa a marca psicológica dos 90 minutos e da redução de 50% do tempo de viagem face ao tempo actual, mas sobretudo é normal os horários comerciais terem folgas de circulação que poderão facilmente atirar o tempo para 1h45 ou 1h50, o que já começa a ser um tempo pouco interessante para 300 kms servidos por linha nova. Parece evidente que o risco de redução de velocidade é grande para aquele que é o maior benefício potencial da infraestrutura – servir o tráfego acelerado de passageiros entre as duas metrópoles.
A existência de circulações nocturnas de comboios de mercadorias são o que justifica o estudo desta opção, dado que inequivocamente aumentaria a utilização da infraestrutura durante a noite, quando não circularem já os comboios de passageiros. Se esse adicional compensa a perda de procura de passageiros e os custos adicionais de manutenção (os comboios de mercadorias sujeitam a infraestrutura a um desgaste muito maior) é a questão – e que para mim terá uma resposta bastante previsível – não compensa.
Face à linha Évora – Caia, a grande diferença é esta ser uma linha de intenso tráfego, o que tornará altamente recomendável contar com períodos de manutenção estáveis e disponíveis durante a noite, sob pena de complicar a logística de manutenção (e o seu custo).
Mas há acima de tudo um outro parâmetro que basicamente inviabiliza esta opção – que faz sentido ser estudada, e que acabará a comprovar que a opção original é a que maximiza os benefícios: as rampas máximas admissíveis neste troço são de 25 milésimas e não poderão já ser mexidas, o que acarretaria custos de construção muito superiores (mais túneis e pontes). E 25 milésimas é um valor que atira para a inviabilidade o tráfego de mercadorias. Uma locomotiva de tipo 4700 como a operada pela Medway pode rebocar 700 a 800 toneladas numa rampa desta dimensão, contra as cerca de 1.400 toneladas pela linha do Norte, paralela.

Além deste facto, a exigência de um túnel de grande extensão em Gaia obrigaria a uma certificação distinta da própria infraestrutura, nomeadamente por se acrescentarem riscos relacionados com eventuais incidências com mercadorias perigosas, risco inexistente se a linha for dedicada apenas e só a comboios de passageiros.
Assim, não acredito que seja viável sequer a utilização da nova linha por comboios de mercadorias, quanto mais que esse eventual tráfego adicional pudesse compensar os custos adicionais de manutenção e a redução de atractividade no tráfego de passageiros. É uma opção que faz sentido estudar até para garantir que o projecto que está a ser proposto maximiza de facto o seu benefício com as características que tem, e tendo o resultado que parece evidente que terá, terminará com qualquer dúvida que possa haver de que nesta infraestrutura a velocidade comercial aconselhável é de 300 km/h.