Estação na cidade ou estação no mato – a questão de Leiria

Estação na cidade ou estação no mato – a questão de Leiria

2 Dezembro, 2023 11 Por Joao Cunha

Está actualmente em preparação o projecto para o troço da linha de alta velocidade entre Carregado e Soure, que passará por Leiria. Antes da saída para discussão pública, as entidades locais estão a ser consultadas e estão a discutir com a Infraestruturas de Portugal os prós e contras do projecto, com o objectivo de preparar um projecto que seja o mais consensual possível.

O que está proposto

A pedra de toque do projecto da linha de alta velocidade Lisboa – Porto é como compatibiliza harmoniosamente a nova infraestrutura e as linhas convencionais já existentes, construindo um cenário de viabilização de ambas em conjunto muito mais favorável do que o projecto anterior, datado de 2009.

No caso de Leiria, com a linha de alta velocidade a passar ao largo da cidade, o que está proposto é a existência de acessos à linha do Oeste antes e depois de Leiria, permitindo utilizar a actual estação da cidade – renovada para o efeito – para os serviços da linha de alta velocidade. Ou seja, em vez do que se previa em 2009 que era uma estação no meio do nada, a população de Leiria ficará de facto a 40 minutos de Lisboa.

Esta proposta é uma evolução significativa do proposto em 2009 e que mostra como a Infraestruturas de Portugal tem pensado muito bem o projecto de alta velocidade. Permite, por exemplo, que antes da paragem dos comboios de AV, possam chegar a Leiria comboios da Figueira e das Caldas para aí lhes darem correspondência, repartindo em sentindo inverso após a paragem dos comboios de AV, garantindo fáceis ligações para assegurar a distribuição fina das pessoas e ao mesmo tempo servir às tradicionais necessidades com epicentro em Leiria, que é a capital regional, para todos os efeitos.

A alternativa

A alternativa é a que já era conhecida em 2009 – construir a estação de alta velocidade de Leiria em Barosa, próximo do Vale de Areia – literalmente no meio do mato. Essa era a solução do projecto anterior que, em bitola internacional, isolava totalmente a alta velocidade do resto da rede – e tornava altamente complexo levar as ligações até às estações existentes, com localizações muito mais apetecíveis e agora trazidas para o novo projecto.

A estação estaria em linha recta a cerca de 2,5 quilómetros da estação de Leiria, mas totalmente excêntrica às dinâmicas de mobilidade da cidade. O principal argumento que surge nestas alturas é que este tipo de estações podem ser “a estação da região”, como se as regiões fossem entidades abstratas e como se a principal cidade de cada região não fosse, por alguma razão, o ponto focal e central da região – porque é onde estão os principais serviços (hospitais, escolas, universidades, tribunais, e por aí fora). A “estação da região” é a estação que melhor servir a “capital da região” – ponto final.

Há estações excêntricas por essa Europa fora?

Não faltam. França tornou-se mundialmente conhecida por este tipo de estações, desde logo a partir da célebre “Gare des Beterraves” (ou estação das Beterrabas, uma alcunha que diz tudo), oficialmente “Gare TGV Haute-Picardie”, a estação na LGV Nord que nem serve Amiens nem serve Saint-Quentin, mas que serve “a região”. Essa entidade abstracta não parece ser suficiente, dado que para os habitantes de Amiens continua a ser mais rápido apanhar um comboio convencional na sua cidade para irem para Paris do que irem apanhar o TGV no meio dos campos agrícolas.

Este tipo de estação tem continuado a ser realizada em expansões mais recentes das LGV francesas, mas com nuances e distintos graus de sucesso. A gare “TGV Lorraine” também fica no meio do mato, entre Metz e Nancy, e procura dar opções aos comboios Paris – Strasbourg que eventualmente possam ter benefício em parar a meio (tanto Metz como Nancy são grandes cidades francesas mas seria impossível ter a LGV a passar lá). Localizada numa linha com comboios de 30 em 30 minutos, é servida por … 5 comboios por dia. E aqui começa o retrato da fatura que este tipo de estações excêntricas trazem agarrada.

Entre outros exemplos temos a estação de Valence-TGV, que tem uma diferença fundamental para o caso da alternativa proposta em Leiria – está localizada no cruzamento da linha de alta velocidade Paris – Marselha e da importantíssima linha Valence – Grenoble – Chambery, sendo directamente servida por comboios convencionais regulares. Surge assim a oportunidade de, para os TGV que não saem nesse nó para ir ao centro de Valence, ter mais algumas paragens dos rápidos Paris – Marselha que depois têm ligações muito boas para Valence ou Grenoble, numa dinâmica regional verdadeiramente existente e já pré-existente.

Mas o exemplo mais parecido é o da estação de Montpellier-Sud de France, construída quando França construiu o “contorno de Montpellier”, uma linha de alta velocidade apta também a mercadorias, para descongestionar a passagem pela cidade universitária. É o melhor exemplo porque fica a uma distância do centro da cidade parecida à da proposta de Leiria (6 km em linha recta), e porque mesmo assim a oferta de comboios na estação central (St. Roch) é muito maior que na nova estação de alta velocidade – cerca de 10 TGV diários para Paris no centro da cidade, contra metade na estação excêntrica. Qual pode ser a motivação para manter uma presença tão forte numa segunda estação, depois de se ter construído uma nova situada na nova linha? Parece óbvio.

Ainda existem mais casos, como a estação de Besançon-Montbelliard, que ainda sendo recente acumula já tantas anedotas na imprensa e desprezo dos locais como a estação das Beterrabas, que foi construída em 1993.

Os impactos para Leiria

Qualquer análise ambiental foca-se nos impactos negativos e positivos da construção da infraestrutura. A necessidade de duplicar a linha do Oeste mas sobretudo de criar uma estação de dimensão substancialmente maior do que a existente. Os impactos sobre edificado e património são similares aos que acabam de ser aprovados em Coimbra, e a razão pelo qual foi aprovado num contexto muito mais difícil como o de Coimbra é de que o benefício ultrapassa largamente os transitórios impactos sentidos, que se focam fundamentalmente no período de obras e enquanto se estão a relocalizar casas directamente impactadas.

Com a linha do Oeste preparada para velocidades entre 160 e 200 km/h, anunciadas como objectivo pelo vice-presidente da Infraestruturas de Portugal em recente alusão ao projecto de renovação do troço Caldas – Louriçal, a diferença de tempo para um comboio Lisboa – Porto com paragem em Leiria situa-se em menos de 5 minutos com paragem numa estação no meio do mato, na linha de alta velocidade, ou com a breve incursão de 14,5 quilómetros pela linha convencional, 6,5 dos quais são já os troços de ligação à linha de alta velocidade. Assumindo uma velocidade média de 120 km/h no troço convencional e de 200km/h na linha de alta velocidade (porque é preciso frenar para parar na estação e rearrancar, em qualquer dos casos) e admitindo que neste troço de Leiria o traçado convencional será cerca de 5 quilómetros maior do que o trajecto sempre via LAV, estamos a falar de cerca de 4min30seg de diferença no tempo de trajecto para um comboio com paragem em Leiria, a que se somará o tempo de paragem (igual nas duas alternativas, claro).

A actual estação de Leiria está no limite urbano da cidade, integrada na mobilidade intra-cidade e com acesso fácil às centralidades da cidade. Faz muita diferença para a viabilização da infraestrutura que ela seja acessível e fácil de usar, e mais ainda permitindo a fácil conexão com comboios da linha do Oeste, que multiplicam as origens/destino servidas pela alta velocidade com necessidade de apenas um transbordo, que pode até ser feito na mesma plataforma.

Os principais impactos negativos ocorrerão até pela necessidade de duplicar a linha do Oeste e não propriamente na estação em si, onde os terrenos do inutilizado terminal de mercadorias podem facilitar muito o aumento da estação de Leiria. E não será a duplicação da linha do Oeste necessária em qualquer cenário de melhoria das condições de tráfego e ligação com a alta velocidade? Parece-me que se estão a olhar para impactos que seriam sempre induzidos por outros projectos e por outras necessidades de expansão de capacidade, que a alta velocidade vem apenas sublinhar, mas não fundar.

Conclusão

Será um tremendo erro se a IP deixar cair a espectacular evolução que concebeu ao projecto de alta velocidade para Leiria. A solução de 2009 era coxa mas dada a fraca interligação da linha com a rede convencional, quase era inevitável. A solução que apresentaram em 2021-22 é uma solução muito boa, a ideal, e que maximizará o bem-estar das populações da região – a região aqui neste caso é mesmo Leiria, porque as infraestruturas de transporte de 1º nível devem servir sobretudo bem os centros/capitais das regiões, pelo que elas significam na mobilidade e centralidade de serviços, como já anteriormente disse.

Associada à prometida renovação de Caldas – Louriçal para patamares de 160/200 km/h, a breve utilização de 8 quilómetros da linha do Oeste pouco acrescento de tempo implicará para comboios com paragem em Leiria, e permitirá que os futuramente competitivos comboios do eixo regional (aqui está a dimensão região!) Caldas – Figueira da Foz possam utilizar a mesma estação dos comboios de alta velocidade, replicando aí facilmente esquemas operacionais que permitam fácil e atempado transbordo de e para os comboios de alta velocidade, assim garantindo que a estação de Leiria, central e que serve a capital da região, será a efectiva alavanca de desenvolvimento regional, beneficiando deste forma Caldas da Rainha, São Martinho do Porto, Valado, Marinha Grande, Monte Real, Louriçal ou Figueira da Foz.

A estação da Barosa, literalmente no meio do mato, implicaria que as dinâmicas da cidade de Leiria não seriam reproduzíveis para inclusão da estação ferroviária de alta velocidade, obrigando a serviços de transportes novos e menos ligados com a cidade, e a maior dependência do carro. Ao não ter ligação com a linha do Oeste, na prática toda a conexão regional se perderia. Na prática, “a estação da Região” da Barosa seria na prática uma má estação de “apenas Leiria”, dado que se perderia a conectividade com a restante região.

Todo um contra-senso de termos e de objectivos, muito em linha aliás com os aberrantes exemplos franceses, que ao longo dos últimos 30-40 anos foram enchendo páginas de anedotas da imprensa gaulesa, precisamente pela sua inadequação e desajuste, o que provoca que sejam estações com níveis de serviço muito baixos, em linha com a procura que acabam por ter.

Espanha, que avançou para uma rede de bitola internacional que teria os mesmos problemas de integração que em Portugal se viram em 2009, não poupou na altura de levar a alta velocidade ao centro das capitais regionais. Mesmo sem poder aproveitar as vias convencionais (facilidade que o projecto proposto pela IP em 2021 tem à disposição!), existem ramais de acesso dedicados e paralelos às linhas convencionais em Zaragoza ou Lleida, para citar apenas dois exemplos, para lá da linha de alta velocidade que corre ao largo destas cidades e para serviço dos comboios directos.

Que se implemente o que a Infraestruturas de Portugal nos propôs em 2021. É uma simbiose pouco habitual em projectos de infraestruturas em Portugal, e por isso tem de ser executado. Todos ganham!