Contas e Horizontes da CP em 2023

Contas e Horizontes da CP em 2023

15 Julho, 2024 0 Por Joao Cunha

As contas da CP do ano transacto são um excelente exercício para perceber que nem só de números positivos se faz um cenário optimista. O ano de 2023 foi muito difícil para a CP – durante seis meses, greves intermináveis a que o governo não pareceu dar grande importância e, todo o ano, uma empresa que mostra estar a léguas da atitude comercial que hoje se exige perante uma concorrência de cada vez maior nível do sector rodoviário.

Os grandes números

O resultado global positivo de 2023 foi de 3,5M€ positivos, 61% menos do que em 2022, o primeiro ano em que a empresa havia registado lucros. Este resultado vem acompanhado de uma descida dos proveitos de tráfego em 8,3M€ face a 2022, devido ao efeito das greves – ainda que em 2022 já tivessem havido alguns episódios agudos, no final do ano.

A empresa recebeu mais de 150M€ em subsidiação de serviço público, um valor que está a chegar quase ao dobro do anunciado aquando da assinatura do contrato de serviço público, há uns anos. Ficou ainda assim abaixo dos 200M€ que chegaram a estar orçamentados, devido à previsão do governo de dar mais compensações à CP ainda em parte devido à crise de Covid em anos anteriores.

2023 foi o último ano onde a empresa suportou os gastos financeiros com a enorme dívida de que se viu livre no final do ano – foram 51M€ de gastos financeiros contra uma previsão de 16M€ que já reflectia o custo da dívida remanescente, pós-reestruturação financeira.

Ou seja, por um lado parece que a empresa pode facilmente ter um resultado líquido bastante superior já em 2024, até porque o que o contrato de serviço público exige à empresa é bastante residual e sem grande impacto financeiro mesmo quando o serviço é foleiro – já lá vamos.

Mas os números têm contrastes. Parte do resultado positivo foi atingido com uma despesa com remunerações 8M€ abaixo do previsto, fundamentalmente por não contratação do pessoal previsto – a CP terminou 2023 até abaixo do número de trabalhadores que tinha quando iniciou o ano. É também mencionada redução dos gastos com manutenção e fornecimentos externos, visível no abrandamento até crítico que actividades de renovação de material circulante tiveram durante 2023 – basta ver o ritmo de entrega das carruagens Arco ou o não início da renovação dos comboios Intercidades.

Além disto, sem impacto linearmente visível no P&L do ano, a empresa apenas executou 25% do seu plano de investimentos para 2023 – se acreditamos que é pelo investimento que se capacitam empresas para melhores serviços e para captar mais passageiros, vemos que a persistência deste tipo de taxas de execução coloca a CP numa autêntica guilhotina. 85M€ de desvios é pelo adiamento da atribuição do concurso para 117 novas unidades (em tribunal), mas há a destacar mais de 20M€ por executar em renovações de material circulante já na posse da CP, atribuído a falta de recursos humanos e de aprovisionamento de materiais – falta de autorização de despesa? Certo é que em 2023 houve mais de 90M€ de aquisições e despesas várias cativas.

O ambiente da CP parece não ser estável o suficiente para permitir garantir a sustentabilidade futura da empresa – desde logo, porque os seus activos continuam em acelerada degradação e parece não existir um encontro entre necessidades operacionais e comerciais e recursos disponíveis.

Serviço – o passivo não quantificável

Os indicadores comerciais da empresa são, em 2023, muito maus. Os comunicados à imprensa foram salvos pela permanente subida do tráfego de Lisboa, que nem assim vai merecendo melhor atenção e reforço à altura, apesar de não faltarem comboios para isso. A subida de 23% em Lisboa permitiu atirar para uma nota de rodapé uma difícil situação no Longo Curso (-6% de passageiros e -5,9% de receita), onde a concorrência rodoviária atingiu em 2023 todos os recordes de tráfego e facturação, ao qual a CP responde sem qualquer dinâmica de ataque ao mercado e com comboios Intercidades que estão há 20 anos a desesperar por uma renovação minimamente digna.

Se Lisboa aumentou 23% mesmo reduzindo a oferta em 4,5% (greves), já no Porto a redução de tráfego de mais de 3%, e mais de 9% em proveitos (justificados pela CP com desfasamento no apuramento de verbas compensatórias do PART), face a redução de oferta similar a Lisboa (5,3%) tem de questionar o que se passa a Norte, onde a CP tem concentrado as suas apostas operacionais praticamente todas.

Em geral, os números da CP estão totalmente impactados pelas greves, com reduções assinaláveis de oferta. Uma prova mais de que não é possível confiar numa CP sustentável e capaz de desempenhar o papel de promoção da viagem de comboio com tantas guerras laborais e dificuldades para criar um ambiente normal, como conseguem as empresas privadas. A CP tem uma vantagem que talvez jogue contra si – é que contrariamente aos privados que nas várias concessões de transportes são penalizados também por falta de oferta quando há greve, para a CP a greve é um motivo de isenção para efeitos de cálculo de oferta não realizada – o contrato de serviço público é o primeiro a desresponsabilizar a empresa de ter os seus quadros satisfeitos.

Como era expectável e como foi visível ao longo de 2023, nem as greves salvaram a pontualidade que terá atingido em 2023 o seu ponto mais baixo em décadas, citando a CP 2/3 de casos provocados por causas externas – mas 1/3 de causas próprias, mesmo que seja verdade, continua a ser imenso dado que o universo de atrasos foi verdadeiramente dramático: o longo curso atingiu menos de 50% para Alfas e apenas 54% para Intercidades, números que francamente não me lembro de ver citados nem em países africanos. Isto deve obrigar toda a gente a pensar o que está a falhar no sistema, como um todo – porque entre avarias e problemas operacionais da CP, falta de resiliência da infraestrutura ou obras demasiado intrusivas, o que os caminhos de ferro estão a entregar ao país é um serviço absolutamente lamentável.

De resto, a análise das contas da CP podia começar por aqui – há uma ameaça estrutural óbvia no horizonte, não quantificável em números. Chegámos ao momento em que as finanças da empresa estão saudáveis e são relativamente fáceis de manter em bom estado – o contrato de serviço público entrega muito e exige quase nada – mas em que os passivos não quantificáveis se fazem ver e temer o pior. Está a CP preparada para enfrentar a concorrência rodoviária? Nem preciso de citar potencial concorrência ferroviária.

Chegar ao mercado, ter comboios mais actualizados e realizar esforços de optimização estruturais e alinhados com as melhores práticas de gestão de qualidade total têm de permitir subir muito o nível da empresa. Será possível? Não faço ideia. Mas não há alternativa para sobreviver. O contrato de serviço público qualquer empresa o consegue executar, por isso já não será isso a ser o elemento distintivo que nos garantirá que a CP continuará a ser necessária ao país daqui a 10 anos. Que a empresa aparentemente não esteja a entender que esta questão é visível no seu relatório de contas e actividades mostra que está na altura do poder político decidir o que quer fazer desta empresa – tem salvação? É melhor começar do zero? Como se reestrutura uma empresa assim?

Nada será rocket science, mas as respostas que tardam são as que mais se impõem.