Exploração da alta velocidade – modelos de negócio, comboios, concorrentes

Exploração da alta velocidade – modelos de negócio, comboios, concorrentes

25 Julho, 2024 3 Por Joao Cunha

O ministro Pinto Luz esteve no parlamento a responder a perguntas de deputados e a resposta que mais eco teve focou-se na redução da encomenda de comboios de alta velocidade por parte da CP, que ultimamente havia subido esse número para 16. O ministro justificou com a necessidade de não saturar o mercado e promover a concorrência – Pinto Luz não quer CP “monopolista ou maioritária” na exploração de serviços da alta velocidade – Observador

Esta resposta, cujo âmbito foi determinado pela pergunta, naturalmente, mostra a necessidade do Estado clarificar bastante mais do que isto relativamente ao que será a pegada pública na exploração da alta velocidade – onde o número de comboios é apenas a nota de rodapé, uma consequência, e não uma variável. Terá sido a primeira vez onde o ministro caiu ou se deixou cair numa simplificação excessiva do tópico. De facto, não parece ser óbvio que o número de comboios determine a quota de mercado do operador – quão mais fácil seria a gestão comercial se assim fosse! – e também não é nada óbvio que as variáveis que realmente contam estejam a ser consideradas na preparação da oferta pública que existirá em cima das infraestruturas de alta velocidade.

Modelos de Exploração

Operar alta velocidade é um mundo completamente à parte – sendo certo que num mercado como Lisboa – Porto até uma agressividade comercial inexistente e uma operação em ruínas conseguirá ser viável, é do maior interesse do país que a oferta que por ali existirá seja o mais competitiva possível, o mais diversificada possível, para que consiga uma captação transversal de procura e assim permita a máxima rentabilização da infraestrutura. O operador público, hoje em dia virtualmente monopolista, é necessariamente a pedra mais importante da equação, e aquela que pode ser instrumental de um ponto de vista de planeamento central – o governo da Nação tem por isso obrigação de pensar ou exigir pensamento do operador público sobre o que se seguirá.

Independentemente dos modelos de exploração, existem algumas variáveis que são críticas: modernidade e conforto das composições, regularidade e consistência (baixa variância) da qualidade da oferta, modelação dinâmica de preços e serviço ao cliente. Qualquer modelo de negócio tem de conseguir assegurar estas dimensões.

Para existir um plano de negócio, tem de existir uma noção do que é o mercado. O mercado está hoje bem mais complexo, exige uma actividade comercial muito mais intensa e muito mais competente do que há anos atrás. Há quem viaje por necessidade profissional, quem o faça para conseguir ter mais actividades de lazer, quem esteja de passagem pelo país em turismo, quem procure regressar a casa ao fim de semana, e por aí fora. Não se conquistará quem anda de autocarro com preços proibitivos, mesmo que permitam refeições ao lugar, nem se conquistará quem anda de carro com um serviço de fraca consistência e com uma variância no nível de serviço que o atire para a dimensão do imprevisível.

Assim, a primeira questão que o Estado devia responder não é propriamente quantos comboios de alta velocidade a CP vai ter, mas antes:

  • Qual a real autonomia que a empresa tem ou terá, e qual o aval que o Estado está disposto a dar no normal risco de negócio que existe em qualquer actividade?
  • Qual o plano de negócios que a CP certamente já elaborou, que modelos de exploração estão previstos, que previsão de fluxo consagra e que rotas entrarão no domínio da alta velocidade?

A não existência de alguma destas definições implica que não existe prontidão para investir em comboios. Nem numa empresa pública, obrigada a gerir bem os dinheiros que são de todos os portugueses, nem numa empresa privada, que nunca arriscará um investimento de centenas de milhões de Euros sem aprovar um plano de negócios concreto e um nível de risco que possa ser aceitável por todos – decisores da empresa, mas também accionistas.

Deste modo, a discussão sobre comboios, podendo ser uma resposta directa a uma pergunta directa, é muito menos do que é exigível e é do interesse do governo de desviar a atenção para o verdadeiro tema substancial. Até porque não parece brilhante querer limitar a oferta de uma empresa porque sim – o mercado, em concorrência, é que decidirá que quota de mercado cada operar terá, com base nos méritos do serviço. E ponto.

Concorrência

O panorama da concorrência em Portugal parece mais ou menos assegurado, mas das manifestações de interesse à concretização vai alguma distância.

Ainda não se percebeu ao certo o que a B-Rail vai fazer, depois de já ter pedido canais horários e ter acenado com a perspectiva de adquirir comboios Talgo convencionais para a rede existente. A empresa está há algum tempo a anunciar ao mercado que adquirirá comboios de alta velocidade, mas para já parece mais um “agarrem-me senão eu vou comprar comboios”, do que uma real concretização de um programa de exploração comercial. A sua demora, em linha com a da CP, pode criar um atraso face ao momento em que o primeiro troço de alta velocidade esteja já construído. Ainda assim, a B-Rail tem uma grande força a seu favor, e que esteve na origem do pedido dos canais horários originalmente – a ideia de utilizar o comboio para concentrar os grandes fluxos que hoje rolam na rede expressos, comprimindo tempos e custos, e fazendo o rebate dos serviços nos grandes nós ferroviários, em Lisboa e Porto. É uma vantagem de partida muito significativa.

Sabemos que a Iryo (Trenitalia + Mare Nostrum) tem interesse em operar em Portugal, e tem aliás um projecto aprovado na Comissão Europeia para estender a sua rede de alta velocidade até à Galiza e a Portugal, tendo já manifestado o interesse de adquirir comboios bi-bitola para alargar a sua rede.

Também a Renfe, até nas palavras do actual ministro espanhol encarregue da pasta, está interessada em entrar em Portugal. O know-how muito significativo que tem na operação deste tipo de serviços e uma frota em crescimento permitirão à Renfe entrar num prazo muito reduzido de tempo, sem as preocupações de tempos de setup que CP e B-Rail enfrentam, por exemplo.

Algo que todos os potenciais concorrentes já listados têm é uma capacidade comercial totalmente actualizada e profissional, uma grande experiência na operação de serviços em permanente evolução e com um time-to-market em aceleração, tal como estão a acelerar as mudanças nas expectativas dos clientes. Parece ser claro que todos terão uma relativa facilidade em criar serviços competitivos, assim confirmem investimento em comboios e demais estrutura.

Os comboios

Não esperem encontrar nesta secção grandes comentários ao número de unidades necessárias para a CP – não acho de todo que seja o ponto nesta fase.

Como um resumo das anteriores secções, o que o Governo e CP têm de pensar é se estão preparados para gerir uma realidade totalmente nova – pode-se vingar na alta velocidade com o status quo existente na CP, mas o que se considerá um sucesso é um patamar de procura e de rentabilidade muito acima do que tem hoje o Longo Curso.

  • Há uma máquina comercial e de marketing de alto nível capacitada para ouvir os potenciais clientes?
  • Existe capacidade de adaptação de oferta e da relação com o cliente em espaços de tempo curtos?
  • Está a máquina operacional preparada para entregar um serviço com uma variância muito baixa nos seus principais critérios – ex. pontualidade, regularidade, limpeza, informação ao cliente?
  • Estão definidos os eixos para oferta com recurso a serviços puramente AV (até 300 km/h) e os eixos para ofertas intermédias (eventualmente a 220, com os actuais Alfas)?
  • São conhecidos os segmentos de clientes a atrair em cada um dos eixos?
  • Existe estabilidade empresarial para focar a estrutura no hiper competitivo mundo da alta velocidade?

Daqui podem sair fundamentalmente três cenários:

  • Operar com o status quo;
  • Criar uma empresa subsidiária apenas focada no Longo Curso/AV;
  • Atrair um parceiro para uma joint-venture, em empresa subsidiária e com atracção de capacidades que a CP não tem.

Depois desta definição estratégica – cujo racional já tem de existir ao dia de hoje – então sim, fará sentido ir ao nível táctico e formalizar o plano de negócios, que dá origem à necessidade de comboios. Em tempos recentes creio que se falava em 12 comboios, antes dos 16 que ultimamente foram anunciados pela CP.

Onde está o foco

De tudo o que explico acima, o que realmente interessa saber neste momento é:

  • Qual é o modelo empresarial que o Estado preconiza, com a CP, para a operação pública de alta velocidade? Qual dos três modelos e porquê?
  • Que serviços estão projectados no plano de negócios para a operação pública de alta velocidade?
  • Quais as expectativas de tráfego e retorno associado, que devem estar visíveis no cálculo do investimento necessário?
  • Tem a CP um plano de negócios atractivo o suficiente para se financiar autonomamente, ou tem o Estado que intervir? Este último caso é um alerta vermelho de algo que não está suficientemente maduro / comprovado, pois CP e Estado há muito que dizem que a CP vai ser autónoma na aquisição de um parque para a alta velocidade.

Onde me parece que está a virtude

Eu descartaria por completo a possibilidade da CP operar com o status quo, parecendo-me essencial construir uma nova estrutura totalmente adaptada e projectada para os desafios específicos da alta velocidade e das muitas oportunidades que traz consigo. Precisa de uma estrutura orientada para o negócio, ágil e pequena, capaz de dominar as tendências do mercado, lê-las e transpor para a operação. Não me parece que uma CP como existe esteja capacitada para maximizar a rentabilidade social e económica que a aposta que estamos a fazer nas infraestruturas justifica.

Dada a dificuldade de assegurar que uma nova estrutura, subsidiária, esteja de imediato formatada e orientada para a nova missão, diria que seria pelo menos de tentar recolher o interesse de algum parceiro estratégico para a criação de uma joint-venture – no fundo, uma entidade empresarial subsidiária da CP e participada por outro parceiro. O que a Iryo é em Espanha é um modelo altamente virtuoso e que dá uma resposta rápida e cabal às várias dificuldades que a CP terá para se apresentar no mercado com a mesma frescura e adaptabilidade que empresas como Renfe, SNCF ou Trenitalia se apresentam – e isto de facto não tem nada a ver com ser pública ou privada, as empresas simplesmente se foram desenvolvendo de forma (bem) diferente.

Com condições de sucesso reunidas, acredito que a seguir se possa olhar com mais confiança para um plano de negócios – qualquer que ele seja – e confirmar uma encomenda de comboios. Não sei se serão 12 ou se serão 16, sei que o ministro Pinto Luz (ou a CP) ainda não deu qualquer informação ao país que permita perceber se o Estado sabe para onde está a caminhar neste assunto. E essa é a prioridade.