Ainda a CP e a alta velocidade
Regresso ao tema de um dos meus textos mais recentes motivado pela recorrência do tema na cena mediática a par de uma total ausência de novidades – singularidades.
Já antes abordei o que são os cenários competitivos distintos, mas desta vez vou a jogo aproveitando a boleia do Diogo Magalhães, que no Linkedin fez um post com perguntas simples – simplistas até, parece-me que propositadamente – Publicação | Feed | LinkedIn. O ponto que interpreto do post é o de que na realidade pouco ou nada se sabe e pouco ou nada estará estudado para saber qual é o dimensionamento ideal de uma frota de AV para a CP.
Anteriormente não deixei de referir que me parece francamente pobre e até descabido ter esta discussão pensando em quotas modais, como se num mercado aberto isso tivesse qualquer sentido ou se as variáveis fossem simples a ponto de serem monopolizadas. O ministro Pinto Luz ainda não corrigiu o tiro e põe-se à mercê do que é outra realidade indesmentível – quando não é a esquerda a governar, a imprensa é muito rápida a questionar as intenções dos políticos e até a encontrar conflitos de interesses nas suas equipas, mesmo casos obviamente absurdos como o do assessor do ministério que era consultor na área – parece-me que é antes bom recrutamento.
As perguntas
Parece evidente que uma discussão aprofundada sobre a frota de alta velocidade da CP tem de primeiro responder a várias perguntas, sendo o meu espanto a resposta não existir ainda – trata-se ou de segredo excessivo, ou de amadorismo, mas o trabalho do jornalismo é precisamente perceber qual dos dois cenários se verifica.
- Qual é a matriz de serviços interiores (em Portugal apenas) que será realizada com uma maioria de kms percorridos na futura LAV Lisboa – Porto?
- Que ambições internacionais pode / deve ter a CP? Como encara o mercado galego ou de Madrid?
- Que eventuais novas ligações rápidas podem surgir, por exemplo como é sugerido numa versão do Plano Ferroviário Nacional (coisas como serviços Lisboa – Figueira da Foz ou Porto – Guarda, para dar dois exemplos)?
- Qual é a probabilidade de comboios tão complexos como os pendulares poderem ter uma vida útil prolongada para lá de 2030?
- Como serão os Intercidades pós-2030?
- Qual é o custo de uniformizar uma frota de longo curso em torno de comboios aptos a 300 vs o custo de uma frota mais segmentada e mais adaptada eixo a eixo?
Não se pode pensar parcelarmente
São conhecidas as dificuldades da CP para pensar o seu próprio futuro – a excessiva interferência política, o seu estatuto equivalente a uma repartição pública, a dificuldade de atrair quadros executivos para a gestão da empresa e – há que ser franco – muitos vícios que a empresa tem e que a impedem de querer ser uma empresa normal.
Mas nada disto pode ser desculpa para que não se defina uma estratégia – como já anteriormente disse, a alta velocidade vai abrir uma realidade totalmente nova nos caminhos de ferro em Portugal, e será louco quem pensar que a CP estará preparada para o desafio se quiser agarrá-lo sem especiais adaptações. Já o disse antes e volto a sublinhar.
O que está em causa na compra de comboios de alta velocidade não é o mero serviço à LAV Lisboa – Porto. Antes, o que está em causa é como é que a CP vê o seu futuro nas ligações de média e longa distância, dentro e fora de portas. Intercidades, Alfa Pendular, “TGV” e eventuais novas ligações rápidas fazem todas parte da mesma equação, e uma das angústias que a discussão me tem dado é ver que praticamente ninguém olha para lá do imediato. É certo, há uma urgência para comprar comboios (onde é que andou essa urgência nos últimos anos?), mas é também relevante sabermos se a urgência está ou não acompanhada de bom trabalho preparatório do novo negócio, ou se nesta altura ainda nem essa base existe.
Por exemplo, querer ir a Madrid levanta o tema da necessidade de comboios bi-bitola – logo aqui há uma análise custo-benefício a fazer: quer a CP uma única frota de comboios bi-bitola, ou vai segmentar a frota com uma pequena frota apta a Madrid e o resto apta apenas a território nacional + Galiza?
Ir à Galiza levanta várias outras questões, independentemente de existir ou não a LAV Braga – Valença: a CP vê procura para que esse eixo seja uma continuação regular dos comboios Lisboa – Porto ao longo do dia, ou vê vantagem em partir o serviço no Porto? Via Braga ou via Viana, existe mercado para ambos? Vale a pena comprar comboios de alta velocidade pura (300 km/h) para irem na linha do Minho e comprar uma única série (com mais unidades), ou vale a pena segmentar a frota para se adaptar melhor à infraestrutura e baixar custos por outra via?
Os serviços Intercidades aproveitando a LAV serão feitos com locomotiva e carruagem ou serão feitos com automotoras como os comboios pendulares? No primeiro caso, a CP está a projectar alguma evolução do material circulante convencional (por exemplo olhando aos exemplos austríacos com os Railjet que percorrem algumas LAV) ou acredita que o actual parque de carruagens pode durar mais 20 ou 30 anos? Só neste último caso é que faz sentido não olhar para o parque de carruagens nesta altura. E no caso dos comboios pendulares, conhecendo-se a sua complexidade e custos de manutenção elevados, até pela comparação com o resto da Europa onde este tipo de comboios sempre teve uma vida útil relativamente curta, é possível pensar que é provável que eles continuem em serviço com baixos custos de operação para lá de 2030, para servir eixos Intercidades actuais ou novos que se venham a criar?
Vai a CP apostar numa lógica de serviço como a defendida no plano ferroviário nacional no horizonte 2030? Ou seja, frequências mínimas de duas horas para os Intercidades, operação de eixos “curtos” como Lisboa – Figueira da Foz (até para melhor servir Leiria, nova centralidade do país), ou vê uma simples continuidade dos serviços pontuais ao longo do dia? O segundo caso praticamente fecha o caso da continuação do modelo de operação com carruagens, mas faz já pensar no que é o seu futuro. O primeiro abre a porta às automotoras, podendo ser inviável operar tudo com apenas 9 comboios pendulares, mesmo que se considere que é provável que eles estejam em bom estado no horizonte 2030.
E para Sul, como será? Justifica-se que os comboios de alta velocidade sejam usados em 300 ou 400 kms de vias convencionais para conseguir continuidade desde o Norte do país sem transbordo em Lisboa, ou é melhor uma frota mais reduzida na alta velocidade e comboios mais adaptados (baratos) para viajar para Sul? Estão feitas as contas ao balanço entre ganhar escala na frota, custos unitários de aquisição, custos de operação, capacidade por comboio e por aí fora?
Quantos comboios, afinal?
Eu tenho a maior dificuldade de definir o que pode ser a quantidade ideal para a CP. E parece que a empresa também, pois já andou entre 12 e 16, com previsão de opções adicionais para confirmar no futuro. A CP seria quem mais interesse teria em divulgar algumas pinceladas do plano de negócio que necessariamente nesta altura já tem de ter para entrar alta velocidade, mas apenas temos ouvido falar de número de composições, o que levanta dúvidas bastante razoáveis sobre o grau de planeamento da nova realidade. Do lado do Governo, também não ouvimos com o anterior governo e não ouvimos ainda com este se existem recomendações do accionista para a sua empresa tutelada, se está confortável com a actividade de planeamento da CP ou não, se conhece um plano de negócios concreto. Como ninguém diz nada, e como dizer alguma coisa teria um proveito óbvio às instituições aqui em causa, é bastante verosímil assumir que não existe nada de holístico e economicamente sustentado.
Assim sendo, parece óbvio que é preciso atalhar caminho. Por um lado, exigir um plano de negócio digno desse nome – com estudos de mercado, com hipóteses operacionais e comerciais em cima da mesa, com estudo também do mercado de fornecimento dos comboios, com comparação com operações de empresas com objectivos similares por essa Europa fora e que integre as várias dimensões do Longo Curso da empresa. O chatGPT ajuda muito a definir o que é que integra um plano de negócio, que terá necessariamente de se debruçar sobre o financiamento, fluxos de caixa e por aí fora.
Por outro lado, é mais ou menos óbvio que há um limite mínimo de número de comboios que a CP terá sempre necessidade. Como o atraso deste processo já é óbvio, eu se estivesse em posição de decisão consensualizaria um número mínimo de unidades e iniciava concurso imediato. Colocaria várias opções por comboios adicionais calendarizadas no tempo, associadas à adjudicação a realizar, com a condição de só poderem ser confirmadas após entrega e validação dos planos de negócio que sustentem a ampliação da frota.
Em todo o caso, o dimensionamento da frota de AV relaciona-se com uma obrigação que a CP tem e que reforço para fechar o artigo – a empresa tem de pensar toda a sua estratégia para o Longo Curso, para toda a frota que o serve, e os comboios para a LAV Lisboa – Porto são apenas o ponto inicial dessa discussão.
Independentemente da opção mais vantajosa serem mais ou menos comboios, a CP tem rapidamente que se dotar de uma visão sólida sobre onde quer estar em 2030 e com que capacidades. E esta é a discussão mais importante para a viabilidade futura da empresa, surpreendendo-me que quem mais defende dogmaticamente uma CP pública e controlada politicamente é quem menos pressiona para que a empresa faça o óbvio na preparação desse caminho.
Falar do número de comboios ou da quota de mercado, sem mais nada a acompanhar, é como tentar servir um gelado sem um cone ou um copo por baixo. A bola de gelado aterra no chão e derrete.