
Que futuro para a linha do Vouga?
Foi anunciado que conheceremos a opção do Estado para o futuro da linha do Vouga até Outubro – estaremos portanto no mês mais decisivo da centenária linha, cuja história das últimas 5 ou 6 décadas está mais marcada por hesitações e indefinições do que por reais concretizações.
Duas linhas, dois destinos
A linha do Vouga é, na realidade, um conjunto de duas linhas – a parte Norte que de Oliveira de Azeméis liga com Espinho, e uma parte Sul que de Oliveira de Azeméis segue para Águeda e Aveiro. A divisão que marco em Oliveira e não em Sernada do Vouga relaciona-se com a densidade populacional e a intensidade de mobilidade, que conhece uma fronteira muito óbvia em Oliveira de Azeméis.
Com duas realidades tão distintas, não faz sentido falar de um futuro para a linha do Vouga, mas de dois futuros – um para cada secção de linha. Comecemos pelo que me parece mais fácil de definir.
A última via métrica – o LRT de Aveiro
A parte Sul da linha do Vouga tem toda a viabilidade e interesse em ser mantida em bitola métrica, por duas ordens de razão – não é difícil atingir patamares de serviço muito superiores mantendo essa bitola (e o que ela poupa em espaço-canal) e permitirá aumentar o interesse da linha com uma entrada em formato LRT para dentro da cidade de Aveiro, cidade em franca expansão e que teria na continuidade de um meio já existente a melhor solução e a que lhe garantia maior escala.
Apesar de fácil de enunciar, este troço Sul não está isento das suas complexidades. É que, de facto, entre Águeda e Aveiro é evidente o interesse de operar um serviço de tipo suburbano – como se operava na linha da Póvoa, também em bitola métrica – mas entre Águeda e Oliveira de Azeméis o caso muda um pouco de figura. A solução parece-me ainda assim relativamente linear – já existindo uma infraestrutura e uma não descontinuidade de meio de transporte, o custo marginal de servir este troço com o prolongamento de alguns serviços desde Aveiro é muito baixo e assegura um serviço com alguma qualidade a uma zona com escassas alternativas e que procurará atrair actividade económica de alguma forma – e o comboio pode ser uma renovada vantagem.
Deste lado da linha, parece evidente o que há a fazer:
- Renovar e electrificar, incluindo algumas rectificações pontuais de traçado, especialmente perto de Águeda;
- Deslocalizar alguns apeadeiros – ideia com anos, facílima de implementar (basta ver que a IP vai fazer apeadeiros na linha de Leixões em apenas 6 meses), mas que tem carecido de vontade real de IP e ministério;
- Iniciar um estudo de traçado e de viabilidade para fazer a linha continuar, em modelo metro de superfície, para dentro de Aveiro e até à costa – possibilitando a veículos tram-train ligar Águeda com Aveiro e Ílhavo, por exemplo.
Além desta capacidade, e aproveitando a dinâmica estabelecida entre Macinhata e Sernada, a linha tem desse pólo até Paradela (na parte encerrada da via) a oportunidade de criar serviços diferenciados com capacidade de atracção turística, como a experiência do Comboio Histórico do Vouga o comprova – e aquela zona não tem assim tantas oportunidades mais para conseguir atrair alguma actividade económica. A formação de um real projecto turístico e museológico permanente, com capacidade de circulação na linha métrica que sobra, deve ser a continuidade natural do projecto de CP e CM Águeda e ancorar valor nesta região.
Oliveira de Azeméis – Espinho: o desafio da densidade populacional
A parte Norte da linha do Vouga tem sido o calcanhar de Aquiles da linha – na realidade, a dificuldade de eleger um cenário para este troço tem contaminado toda a restante linha, mesmo a parte onde é fácil identificar o melhor cenário para progressão. É um paradoxo – a parte da linha que percorre a zona mais densa, com padrões de mobilidade e intensidade de mobilidade que fazem do caminho de ferro a solução de manual, tem confundido administrações, decisores, autarcas e muito mais gente fora do círculo oficial – como se fosse mais difícil entender o que fazer quando é claro o interesse do transporte ferroviário do que quando a sua pertinência pode ser mais discutível.
A dificuldade de entender o que fazer alicerça-se em alguns factores mais ou menos lógicos:
- O péssimo traçado da via actual condena o futuro da linha e pensar em correcções de via em zonas densas apresenta dificuldades de planeamento;
- O que foi feito em Espinho quando se desnivelou a linha do Norte criou uma impedância na circulação entre Vouga e linha do Norte cuja resolução potencial não foi sempre linear:
- duvidou-se da resistência estrutural do túnel para repor a linha do Vouga até à estação, à superfície;
- pensou-se numa nova estação em Silvalde com desvio da linha do Vouga;
- pensou-se em rebitolar o Vouga e divergi-la para uma nova bifurcação da linha do Norte a Sul de Espinho.
- Apesar da enorme densidade da mobilidade no eixo apontado a Espinho, que marginalmente apresenta também interesse para continuidade para o Porto, o grande eixo mobilidade da zona interior é directa ao Porto, com forte concorrência rodoviária.
Quando o caso é difícil por ser manifestamente virtuoso, penso que podemos começar por excluir as más ideias:
- Manter o status quo – linha de traçado muito lento, sem conexão real com a linha do Norte
- Transformar em BRT – seria repetir o erro da Lousã, não traria qualquer competitividade nem capacidade adequada à densidade deste corredor
- Rebitolar a linha com uma estratégia similar à linha de Guimarães – mantendo o essencial do traçado sinuoso, muito lento e sem capacidade para um movimento elevado
Excluídas as opções que são absurdas, já começamos a ter maior clareza quanto às possibilidades. O ponto de partida só pode ser um: trata-se de um corredor de mobilidade fundamental, de alta densidade, e que tem de ser trazido para o século XXI.
O grande objectivo para esta metade da linha do Vouga é claro: servir como eixo de mobilidade estruturante de 1º nível para mobilidade entre Oliveira de Azeméis e o Porto.
A grande condicionante – traçado
Olhando ao traçado da linha entre Oliveira e Espinho percebe-se que não é opção ficar na mesma – essa opção já havia aliás sido defendida com a insípida introdução da Linha do Vouga no PNI 2030, com genéricas menções a melhorias do traçado.

A primeira grande escolha que há a fazer é a da bitola e a forma de interligação com a linha do Norte:
- Manter a bitola métrica e levar a linha, à superfície, de Espinho-Vouga à estação de Espinho, este último em trajecto de tipo urbano com uma implementação de tipo LRT no troço final;
- Passar para bitola ibérica e integrar com a linha do Norte, com uma bifurcação a implementar algures entre Silvalde e Paramos.
Dado que em qualquer caso serão necessárias rectificações do traçado para poder atingir velocidades competitivas, a primazia da bitola ibérica é óbvia – permite criar uma família de comboios entre Oliveira de Azeméis e o Porto, evitando o transbordo (nem sequer ao mesmo nível) que a bitola métrica sempre imporia em Espinho.
Há, desde logo, que perceber como é que a linha se insere na linha do Norte, com reformulação total do traçado entre Paços de Brandão e Espinho / Silvalde / Paramos. É recomendada a construção de um cruzamento desnivelado para o sentido ascendente (Oliveira -> Porto) para evitar cruzar ao nível a linha do Norte, o que retiraria capacidade face à situação presente. Ora a dificuldade é precisamente servir Paços de Brandão – centro populacional vital, com Santa Maria de Lamas ao lado – e encontrar um traçado que permita uma inserção na linha do Norte. Deve ser feito um traçado directo entre os dois pontos, sem mais aproximações a centros urbanos – Paços de Brandão e Espinho são pontos de amarração suficientes para esta curta franja territorial. Os cerca de 7 a 9 quilómetros a construir poderão custar entre 100 a 150 milhões de Euros.

Daí para Sul, é também necessário pensar num traçado totalmente novo – seja em que bitola for. Deve servir São João de Ver a poente (em vez de ser a nascente como agora) e aproximar a estação da Feira do centro da cidade. Um novo alinhamento de Paços de Brandão à linha do Norte quase obriga a novo traçado para Sul, e facilita substancialmente a sua definição – cerca de 6 quilómetros a realizar por um custo que pode rondar os 50M€, em terreno algo mais fácil e menos ocupado do que os quilómetros anteriormente mencionados.

Da Feira para São João da Madeira, realizando o traçado novo da Feira à linha do Norte, já será admissível uma velocidade mais baixa, e isto por duas razões: a maior velocidade e alinhamento do troço para Espinho permite compensar velocidades mais baixas aqui (relembremos que a oferta será de tipo suburbano) e porque a linha do Vouga tem uma inserção excelente em São João da Madeira, que importa preservar – a concessão será um traçado muito mais sinuoso na aproximação. Existe ainda assim uma oportunidade clara de melhorar o traçado entre a Feira e Arrifana, com a supressão de algumas curvas e garantia de mais alinhamentos, mas a curta distância garante uma intervenção de baixo custo, que terá sempre de garantir os raios mínimos para uma operação em bitola larga, electrificação e demais intervenções acessórias.
Daí para baixo também não me parece que tenham de se fazer alterações críticas – há espaço para melhorar o traçado até Oliveira de Azeméis, que já de si é bastante menos sinuoso do que para Norte de São João da Madeira, e deve permitir facilmente patamares uniformes de 90 a 100 km/h, um valor perfeitamente competitivo para serviços suburbanos de paragens frequentes. Os cerca de 20 a 25 quilómetros (uma redução de 5 a 10 face ao actual) que estiverem implementados entre Oliveira de Azeméis e Espinho poderão demorar entre 20 a 25 minutos num serviço suburbano, a que se podem somar apenas 15 a 20 minutos até ao Porto, num serviço de menos paragens – depois de Espinho pode parar apenas em Valadares, Gaia e General Torres, o que até permite atenuar o impacto na capacidade existente / a consumir na linha do Norte pela nova família de comboios.
Para um serviço suburbano este já é um tempo competitivo – não tão rápido como os autocarros directos pela auto-estrada, mas em linha com os serviços suburbanos competitivos que existem por essa Europa fora. O valor da proximidade e de servir vários polos ao longo do eixo ultrapassam a comparação com serviços directos, que só oferecem um par origem-destino de cada vez.
A somar aos 150-200 milhões em novos traçados, o resto da modernização pode custar pouco mais de 50 a 75M€ para incluir algumas pequenas rectificações e restantes intervenções – electrificação, sinalização, expansão das gares – isto num modelo de baixo custo, que permita deixar para uma segunda fase e com consolidação da procura investimentos de upgrade de algumas infraestruturas mais.
Conclusão e outras ideias
O corredor norte da Linha do Vouga só pode ser servido com ferrovia, mas não pode ser mantido nas condições actuais, em qualquer uma das bitolas. Sendo sempre necessário pensar em reformulações grandes de traçado, não compensa pensar noutra coisa que não seja uniformizar a bitola com a linha do Norte, criando serviços directos em direcção ao Porto, o grande pólo de atracção deste eixo de mobilidade.
O custo das intervenções ao longo de 30 quilómetros são inferiores à generalidade das obras em curso nos metropolitanos de Lisboa e Porto, tendo um potencial significativamente superior de influenciar a quota modal dos transportes públicos do que as obras em curso em Lisboa, porque no Vouga influenciam directamente trajectos longos casa-trabalho em automóvel, ao passo que as obras em curso em Lisboa pouco mais farão que fazer transitar pessoas de autocarros para o metro. Isto permite relativizar a dimensão do investimento – tem sempre de estar associado ao que permite resolver.
Existe uma opção adicional, que é compatível com a necessária reconversão da linha até Espinho, que é a potencial amarração com a linha de alta velocidade Lisboa – Porto, que cruzará a linha do Vouga nas proximidades de Lapa, entre Espinho e Paços de Brandão. Se e só se for identificada uma intensidade potencial grande entre Oliveira, São João da Madeira, a Feira e o Porto, para serviços semi-directos, pode ser vantajoso criar ali um pequeno ramal de ligação que permita realizar serviços rápidos Porto-Gaia – Feira/SJM/Oliveira, com recurso a automotoras novas que possam atingir pelo menos 200 km/h. O uso de apenas uns poucos quilómetros da AV não terá um impacto real sobre a saturação da LAV Lisboa – Porto, até porque são os quilómetros que coincidem praticamente com o túnel de Gaia, onde o patamar de velocidade já será inferior aos 300 km/h pelas condicionantes geotécnicas e pela aproximação das paragens. Tal pode permitir um tempo de viagem entre Oliveira e o Porto inferior a 25 minutos, com duas paragens intermédias. O impacto sobre a LAV é reduzido e pode justificar-se se existir de facto uma procura por este tipo de serviços que justifique a obra de ligação, previsivelmente de complexidade similar à do troço Paços de Brandão – Silvalde que já defendi antes e que será sempre necessária.
Veremos o que nos reserva a decisão política. O histórico recente em Portugal é o de procurar horizontes de implementação mais fáceis, por isso pouco ambiciosos e tipicamente desfasados das necessidades e preferências das pessoas, de que a Lousã ou o novo metrobus do Porto são os melhores exemplos. Se por uma vez um governo português quiser virar a página para colocar Portugal numa rota de crescimento e modernidade, a opção só pode passar pela reestruturação da linha na sua metade Norte, e na sua modernização e integração para dentro de Aveiro na sua metade Sul.
Aguardemos, então.