
Os ferroviários têm de falar a linguagem do passageiro – não o contrário
Já tinha este tema em mente há algum tempo, mas a thread do Daniel Zacarias trouxe a pertinência de tomar algum tempo e escrever estas linhas: Daniel Zacarias 🇻🇪 no X: “O sistema de numeração dos lugares no Inter-cidades diz muito sobre a cultura da CP https://t.co/mudkewgUHc” / X
Uma das frases que mais me irrita na ferrovia nacional é a de que “gerir ferrovia é totalmente diferente de gerir autocarros/barcos/aviões/triciclos”. É um tratado, já toda a gente a disse ou ouviu. E quase toda a gente a toma como certa, falemos de gestão de serviço ou da manutenção de escovas de motores eléctricos DC, como se em ambas tivesse o mesmo significado.
Em Portugal o sector continua a viver num mundo tão à parte e tão desfasado do mundo exterior – onde, sublinho, vivem os clientes que pagam a existência do sector – que podemos estar em 2024 a conviver com o anacrónico sistema de numeração de lugares das carruagens Intercidades e aceitar que não apenas não mudem agora, como não vão mudar com a anunciada renovação de “meio” de vida.
A numeração dos lugares vem do tempo dos compartimentos – existia um por janela, tipicamente – onde o número do compartimento (1 a 11, no caso mais habitual por cá) era depois complementado pelo número do lugar (11, 12, 13, 14, 15, 16, para o compartimento 1), dividindo pares e ímpares pelas duas filas de bancos existentes no compartimento, frente a frente. Entre outros motivos, este sistema manteve-se para as carruagens salão (que não eram a regra antigamente, como são agora) porque os sistemas de reserva de lugares analógicos podiam implicar que a central de reservas tivesse de garantir que a pessoa A e B ficassem juntas, à janela ou na coxia, e portanto nessa altura não mexer numa regra universal tinha um valor para o cliente, apesar de já na altura dificultar a identificação do lugar. Mas isso foi há mais de 40 anos.
Os caminhos de ferro por cá continuam a achar normal ter uma carruagem de 88 lugares com lugares entre o 11 e o 118, quando o normal seria do 1 ao 88, todos seguidos e sem dificuldade para a sua identificação. Mas não, a ortodoxia do sistema é suficiente para justificar a sua manutenção – os clientes que se adaptem.
Este exemplo da operação pode ser acompanhado por outro nas infraestruturas, como por exemplo a forma como se nomeiam estações e apeadeiros em locais onde existe mais do que uma. Ainda em 2021 na linha do Minho, com a aparição de duas estações técnicas (Carreço e Carvalha, ambas sem serviço de passageiros e “no meio do nada” para cruzamentos de mercadorias), o gestor de infraestruturas não foi de modas – como uma estação é uma entidade ferroviariamente mais importante que um apeadeiro, toca de colocar a estação/apeadeiro original com um “-A” à frente do nome. Carreço passou a Carreço-A, porque agora Carreço é o troço de duas vias sem serviço de passageiros onde é possível cruzar comboios. O formalismo ferroviário a atravessar-se à frente do bom senso – onde há passageiros é onde a denominação deve ser mais chamativa, onde apenas há actividade técnica para a operação da rede, sem conexão directa com os utilizadores do sistema, até podem chamar-lhe “Carreço No Meio Das Couves”. Mas não, “isto não é como gerir autocarros”, e portanto Carreço é o nome da entidade ferroviária correspondente à estação (que na sua essência é uma entidade com influência na circulação de comboios – podem cruzar, ultrapassar, manobrar, etc), e Carreço-A é o modesto apeadeiro onde entram os clientes que pagam o sistema.
Também destas ortodoxias (ia-lhe chamar teimosias) se faz a nossa rede ferroviária, e muitos mais exemplos similares existem por aí. É óbvia a falta de foco no que interessa: o cliente.
É claro que gerir comboios não é igual a gerir os outros meios de transporte – nos outros meios de transporte, regra geral, a comunicação é feita em termos que os clientes entendem, acima de tudo.