Que comboios nocturnos são necessários?
A propósito de mais uma recomendação aprovada na Assembleia da República para que o Governo português trabalhe com Espanha para a reposição dos comboios nocturnos entre os dois países, vale a pena reflectir sobre o tema – afinal, em 2024 (quase 2025), de que comboios nocturnos necessitamos? Serão as mesmas rotas do pré-Covid? Serão os mesmos serviços? Será o mesmo racional económico?
Para quem me lê regularmente, sabe que mais do que apontar a revivalismos – mesmo os que fazem sentido – faz sentido actualizar conceitos, perceber para onde se dirige o mercado (leia-se, as necessidades das pessoas) e como é que melhorias (desde logo nas infraestruturas) podem alterar os modelos operacionais futuros.
Sud Expresso e Lusitânia
A referência mental para a reposição de comboios nocturnos é o antigo Sud Expresso (Lisboa – Hendaye, antigamente seguia até Paris) e o Lusitânia Expresso (Lisboa – Madrid, via Cáceres e depois via Salamanca). Era esse o padrão de serviço até à eclosão da crise de Covid-19, em Março de 2020.
Nos últimos tempos, ambos realizavam o percurso comum entre Lisboa, Guarda e Medina del Campo, de onde o ramo de Madrid seguia para Sul, e o ramo de Hendaye continuava pela “linha imperial” até à fronteira francesa. A saída era após as 22 horas, com chegada a Madrid bem cedo, próximo das 8h, um pouco mais tarde a Hendaye. Ambos os comboios eram realizados com composições Talgo IV, com configuração nocturna – cabines de beliches, cabines com cama e lugares sentados reclináveis. Por vezes, as cabines com cama eram carruagens Talgo VI, mais recentes.
Com a inauguração da linha Évora – Elvas, prevista para final de 2025 ou 2026 (os atrasos somam-se, na maior das indiferenças), o percurso Lisboa – Madrid deixa de ter real interesse para uma viagem nocturna – as 5h30 de viagem que poderão ser possíveis em trajecto diurno facilmente atrairão interesse para pelo menos um par de viagens diurnas.
Já o eixo Lisboa – Hendaye continua a ter relevância para viagem nocturna.
Pontos de amarração para uma nova oferta
Não faz sentido pensar em trajectos nocturnos para distâncias significativamente inferiores a 1.000 quilómetros – ou os comboios diurnos ou outros modos de transporte terão atributos para conquistar o mercado que se podia interessar pela viagem nocturna. A este propósito, é importante notar que o público para as viagens nocturnas é um nicho de mercado – bastante maior do que há 10 anos, mas um nicho. Procuram algumas coisas específicas: estarem à primeira hora numa grande cidade, para trabalhar ou visitar, evitando uma viagem de véspera com dormida em hotel (o que implica custos maiores). Procuram opções ambientalmente mais conscientes para deslocações de grande distância – esta é uma tendência esmagadora dos últimos anos. Procuram calma e tranquilidade, longe da experiência meio desumana de aeroportos.
Em Portugal, os mercados fundamentais para este tipo de viagens são, obviamente, Lisboa e Porto. Em ambos os casos, tanto para viagens de lazer como de negócios. Se pensarmos em todo o eixo atlântico, Vigo e Braga serão também pontos interessantes de atracção, mas dado estarem em eixos ferroviários distintos, dificilmente conciliáveis.
Pensando nos 800 a 1.200 quilómetros onde fará sentido ter comboios nocturnos, vemos que esta faixa Atlântica atinge os Pirinéus e proximidades. E é precisamente aí que situa o grande interesse de origem e destino de comboios nocturnos. Por um lado, na vertente Norte, San Sebastian, Hendaye ou Bordéus são opções obrigatórias dado estarem ali as grandes ligações de alta velocidade para o resto da Europa (em San Sebastian isso será realidade nos próximos dois anos já). Além do atractivo de San Sebastian ou Bordéus, que só por si geram bastante procura, pensamos nesta oportunidade como a necessária para, à primeira hora, embarcar num comboio de alta velocidade para Paris, Lille, Bruxelas ou Londres.
Do outro lado dos Pirinéus, na faixa mediterrânica, Barcelona aparece como escolha de eleição. Além da incrível escala que possui, com muitas viagens profissionais e de lazer entre Portugal e a cidade, é já um hub para a ligação ao resto da Europa – já tem comboios de alta velocidade para Lyon, Paris, Marselha ou Toulouse. Terá a breve trecho viagens nocturnas em direcção à Suíça e, com um transbordo adicional, atinge-se a Alemanha, Itália, Áustria, Benelux…
As grandes origens e destinos potenciais para servir Portugal são, assim:
- Lisboa, Porto e Vigo
- San Sebastian, Hendaye, Bordéus e Barcelona
Se para chegar à fronteira Norte dos Pirinéus o trajecto é bastante óbvio – junção do ramo do Porto/Vigo com o de Lisboa em Coimbra/Pampilhosa e seguindo em direcção a França – já uma nova ligação a Barcelona pode ser feita de duas formas distintas, ambas com bastante interesse. De facto, podendo imaginar um comboio a começar no Porto, passando por Lisboa e seguindo para Badajoz, daí tanto pode chegar a Barcelona por Madrid, Saragoza e Lleida (as duas primeiras talvez com menor interesse, dado a passagem a meio da noite), como pode chegar via Albacete, Valencia e Tarragona, irrigando todo o mediterrâneo. Dado que Lisboa – Madrid estará resolvido por comboios diurnos, inclino a minha preferência para o segundo cenário, por servir mercado hoje sem opções ferroviárias.
Que comboio nocturno para os dias de hoje
O grande drama dos comboios nocturnos é exigirem uma frota de carruagens específicas, menos utilizáveis durante o dia, e ainda por cima com uma ocupação de espaço menos eficiente – uma carruagem de dimensão similar pode levar 88 pessoas em lugares sentados de 2ª classe, mas apenas 66 em beliches. Ou 66 pessoas em lugares sentados de 1ª classe, mas eventualmente apenas 30 a 40 em camas. Acresce a isso a eventual disponibilização de lugares reclináveis (60-70 lugares por carruagem) ou carruagens restaurante (sem lugares vendáveis).
Além do aspecto físico, o operacional também não é fácil – à chegada e à partida há que tratar da logística da roupa de cama, que tem de ser lavada e reabastecida. Há que tratar da rearrumação dos compartimentos, com levante das camas, e da sua lavagem. Durante a operação do comboio propriamente dito, tipicamente existe um responsável pelas carruagens de beliches e, tipicamente, um responsável por cada carruagem de camas. A função destes é montar e desmontar as camas (que podem ser rebatidas para oferecer lugares sentados enquanto não é hora de dormir), assistir os passageiros nas chegadas (há quem saia antes do términus, e é preciso assegurar que as pessoas se levantam antecipadamente), servir bebidas quentes ou mesmo pequenos-almoços, entre outras. Se existir carruagem bar e/ou restaurante, temos uma tripulação adicional de 2 a 3 pessoas, pelo menos – se a ligação for até 12 horas. E para esta carruagem, há toda a logística de abastecimentos, e há que atrair as pessoas – pensar nos menus oferecidos ao jantar e ao pequeno almoço, que oferta de snacks e de serviço bar para todas as horas, e por aí fora.
A tendência das mais recentes composições parece clara: os lugares deitados económicos, até aqui tradicionais beliches em compartimentos de 4 a 6 pessoas, tendem a transitar para um misto de compartimentos de beliches e lugares individuais deitados, com privacidade, a fazer lembrar os favos japoneses para dormida que há em alguns locais. O problema desta última opção é a maior dificuldade de reaproveitar a carruagem durante o dia, mas se o conceito do Nightjet da Siemens não é adaptável, a Skoda apresentou há pouco tempo um conceito que permite que mesmo estes lugares possam ser adaptados e servirem também a serviços diurnos, mesmo que a disposição seja bastante menos convencional.
Parece ser óbvio o interesse de continuar a contar com carruagens com lugares sentados reclináveis, que pode passar por homogeneizar as carruagens de 1ª classe de serviço Intercidades, com densidade e espaço compatíveis com utilização em serviço nocturno e diurno. Menos um problema aqui.
Já relativamente às camas, tipicamente compartimentos com uma, duas ou três camas, lavabo e, por vezes, cabine de banho e sanita, parecem não haver milagres – serão precisas carruagens dedicadas e utilizáveis unicamente para serviços nocturnos – a sua densidade é tão baixa que, mesmo sendo possível reclinação de camas e disponibilização de lugares sentados, não parece fazer sentido. Este é também o serviço premium de qualquer comboio nocturno, e as tarifas devem permitir compensar a ineficiência da ocupação e utilização do espaço. Não são raros bilhetes de 200 a 400€ por uma viagem nocturna, por pessoa, o que é um preço ainda assim justo por viagens tipicamente de grande distância e com um conforto que se quer similar a um bom hotel.
Sobram os serviços especiais. Para o caso nacional, parece-me vital incorporar serviços de refeição a bordo – tanto pode ser em carruagem restaurante (com cozinha completa incorporada, para confeção a bordo), como em formato bar (capacidade de servir refeições como nos aviões, oferta sólida de bebidas e snacks). Penso que é preferível pensar no formato bar, sobretudo porque implica que no limite até se pode ter apenas um tripulante no bar, e em que são as pessoas que recolham e deixam os tabuleiros com a comida – quer se trate de jantar, pequeno almoço ou qualquer outra necessidade. A vantagem de ser bar é que também se podem homogeneizar estas carruagens com as da oferta Intercidades, evitando frota específica e permitindo reutilização diurna. Como as carruagens bar em Portugal tipicamente até têm também lugares sentados de 1ª classe, pode-se homogeneizar com a tal necessidade de ter lugares sentados de alto conforto para viagens nocturnas.
A seu tempo, e ainda vitalmente resistente em vários eixos europeus, estes comboios transportavam ainda carros e motas. Sendo certo que a infraestrutura de carga e descarga ou já desapareceu ou precisaria de ser adaptada em todas as extremidades envolvidas, até que ponto na era dos carros eléctricos esta oferta não faz muito mais sentido? Imaginam a comodidade de embarcar o carro, carregá-lo em viagem (nada mais fácil para comboios eléctricos) e ter à disposição 100% da autonomia do carro à chegada? Este upgrade no serviço automóvel pode reposicionar o caminho de ferro junto de muita gente. E se falamos em adaptar o serviço de automóveis, podemos também pensar que o vagão dos automóveis pode proporcionar um espaço para várias bicicletas nas pontas, acessível a partir das carruagens de passageiros.
Com tudo isto, parece evidente que, optando por desenhos versáteis, apenas as carruagens cama e os vagões porta-automóveis não serão à partida reaproveitáveis em serviço diurno. Imaginando chegadas a Lisboa / Porto entre as 08h e as 10h da manhã e uma partida entre as 19h e as 22h, são carruagens que podem no mínimo fazer uma ida e volta Intercidades entre Lisboa e Braga, como referência. É um reforço de capacidade interessante a partir da dotação de carruagens para serviço nocturno, e uma ocupação potencial de 18 a 20 horas por dia – até melhor do que as carruagens de serviço diurno convencionais.
Algumas coisas podem sem dúvida ser pensadas: a conjugação de compartimentos de beliches (fáceis de reaproveitar como lugares sentados) e os favos inovadores da Skoda, com sistemas fáceis de bloqueio de acesso e dos locais para as malas – o Nightjet aposta em sistemas totalmente electrónicos, que têm apresentado algumas avarias e um custo de aquisição importante. Para se pensar numa optimização de tripulação, nada como prever sistemas de comunicação que possibilitem que uma pessoa possa assegurar a vigilância de todas as carruagens de lugares deitados, ao mesmo tempo que podem prevenir as pessoas do momento de acordar, sincronizados com a marcha real do comboio e a aproximação do destino – nada mais fácil, em comboios de reserva obrigatória como estes, de saber para onde vai cada pessoa. No limite, e porque há sempre o revisor do comboio adicionalmente, até se pode pensar em dois revisores com funções revistas, que incluam a vigilância dos lugares deitados, conseguindo muito maior flexibilidade e sinergia entre as funções. Se juntarmos a isso o tripulante do bar, é possível um longo comboio nocturno ter apenas 3 tripulantes. O comboio precisa de estar optimizado para isso.
Operação e investimento
A operação necessita de cinco composições – quatro de serviço, e uma de reserva. A de reserva basta ter uma carruagem de cada tipo – por exemplo, carruagens-beliche normalmente serão mais que uma nas composições de serviço.
Isto permite realizar os eixos Porto – Lisboa – Badajoz – Barcelona diariamente, ida e volta, e ainda Vigo – Porto/Lisboa – Hendaye, neste último caso com encaminhamento de alguns veículos entre Vigo, Porto e Coimbra em comboio dedicado ou a reboque de comboios Intercidades, por exemplo.
Desejavelmente, a partida / passagem pelas cidades de maior interesse comercial deve acontecer entre as 18:00 e as 21:30, e a passagem / chegada entre as 07h00 e as 10h00. É possível sair de Lisboa pelas 21:30 e atingir Barcelona às 09h30 do dia seguinte, por itinerários convencionais em Espanha, ou saída do Porto pelas 18h30. No eixo de Hendaye, a saída de Lisboa pode operar-se pelas 19:00, do Porto pelas 20:00, e atingir a fronteira francesa pelas 08:00.
Cada composição pode ser composta por 2 vagões porta-automóveis (um de Lisboa, outro do Porto), 1 carruagem de lugares sentados, 1 carruagem bar + lugares sentados, 2 carruagens cama, 2 a 3 carruagens-beliche (ou favos), com 280 a 320 lugares oferecidos por dia e por sentido. No caso do “Sud Expresso”, do Porto sairia um dos vagões porta-automóveis, uma das camas e uma das carruagens-beliche.
O parque total estaria entre 40 a 45 veículos, tomando 42 como referência e apontando a uma gama próxima da proposta pela Skoda, considerando a especificidade das carruagens e sua modularidade necessária para reaproveitamento diurno, podemos chegar a um custo entre 100 a 120 milhões de Euros. A este custo, há que somar locomotivas interoperáveis – podem ser as 252 que a Renfe tem à venda, bitensão. Para cinco locomotivas deste tipo (inclui uma reserva em Espanha, em Portugal a reserva seriam as locomotivas 5600), para evitar trocas na fronteira, podemos estar a falar de um custo de cerca de 10 milhões de Euros, já contando com equipamento de ETCS+STM, dado tratarem-se de locomotivas com três décadas – mas perfeitamente aptas a este serviço.
Isto significa que só no investimento em material circulante, com uma perspectiva de amortização a 15 anos, as quatro circulações diárias teriam um custo anual de investimento (CAPEX) de 7,3 a 8,6 milhões de Euros, a que se somam potencialmente 2 a 4 milhões de euros anuais de custo de financiamento, e mais cerca de 30 a 35 milhões de euros anuais de custos de operação – portagens, pessoal, manutenção dos veículos, energia, estações, manobras.
Isto significa que o custo por lugar oferecido, para 360 dias de operação anual, é de 40 a 45€, o que modelando aos tipos de lugares oferecidos poderá andar entre um custo de 20€ em lugar sentado a 120€ em camas. Aqui não estou a contar sequer com o aproveitamento de nenhuma carruagem para serviço diurno nem a contar com oportunidades de facturação com carros, motas ou bicicletas, o que reduziria a alocação de custo a cada lugar dos comboios nocturnos. É um valor muito interessante e que pode permitir margens comerciais interessantes, mesmo num cenário de competição aguerrida por preço. Claro que isto será sempre num cenário de enorme optimização – desde logo dos veículos a comprar / renovar, que têm de permitir a simplificação da sua operação, tanto a bordo como nos terminais. Penso que o segredo está aí.
Na perspectiva de ser a CP a agarrar este segmento, é necessário ainda investir para ter uma estrutura operacional em Espanha ou, alternativamente, fazer uma parceria com empresas espanholas ou operando em Espanha para assegurar tracção do lado espanhol – Alsa ou Medway podem ser empresas interessadas e interessantes.
Conclusões
O investimento inicial necessário pode impressionar, mas um custo médio por lugar oferecido de 40€ para eixos de alta procura e até de alta importância para a soberania nacional como os identificados acima mostram que é possível operar comboios nocturnos de nova geração com custos extremamente contidos e permitindo à área comercial imaginar políticas tarifárias muito agressivas e que garantam bons resultados de exploração, comboios cheios e um posicionamento do caminho de ferro que traz proveitos bem para lá dos directamente obtidos nesta nova oferta.
Parece fundamental na reactivação dos serviços repensar como é organizado o serviço a bordo – e o que isso implica nos equipamentos das carruagens – mas também na maximização da homogeneidade de algumas tipologias de carruagens com as de serviço diurno (os lugares sentados, o bar, e porque não voltar a usar carruagens de compartimentos em ICs diurnos?) e pensar em segmentos novos que podem ser servidos competentemente – pensamos nas bicicletas, trotinetes eléctricas ou carros (eléctricos!), que podem ver no comboio uma conveniência máxima. Para este último exemplo, há que somar ao investimento na operação a adaptação de terminais auto-expresso nas pontas, o que pelo menos em Barcelona pode ser um desafio.
Acima de tudo, Portugal não pode continuar sem planos para os comboios nocturnos, e esses planos não podem ser um mero regresso ao passado, quer no material circulante como, sobretudo, na exploração. Os eixos a servir devem ser diferentes e integrar Porto e Barcelona, as carruagens com comodidade deste século e a interoperabilidade assegurada nas fronteiras.
O custo inicial parece alto, mas pensando a 15 anos e mesmo assumindo que não existiria qualquer bonificação nacional ou europeia para aquisição do material circulante, já pareceu bem mais caro operar serviços nocturnos de alto interesse nacional. Para mim, o caminho é já claro – mas esta reflexão parece ainda faltar onde efectivamente as decisões podem ser tomadas.