A mãe de todas as crises sociais da actualidade – a falta de infraestruturas

A mãe de todas as crises sociais da actualidade – a falta de infraestruturas

31 Maio, 2025 0 Por Joao Cunha

Estamos afundados há anos num permanente estado de crise que não entendemos. Andámos décadas a medir a existência de crises por indicadores financeiros do sector público – o défice, a dívida, o peso dos juros da dívida no PIB, o saldo primário, e por aí fora. 2015 foi um ano tão ou mais terrível para o país do que o da crise financeira precedente – para a frente do governo da República o alquimista António Costa decretou o fim de todas as crises e balizou claramente a sua definição aos factores já descritos. Actores políticos sectariamente alinhados e um país de treinadores de bancada alinhou, qual rebanho, com esta tese. De repente os défices desapareceram e até a “política patriótica de esquerda” gerava superávits impressionantes nas contas públicas. Qualquer outro indicador que permitisse duvidar da gestão do país era furiosamente atacado.

Estamos em 2025 e eu estive longe de ser o primeiro a denunciá-lo, mas o seu a seu dono. Já em 2018, no Eco, apontei o que era uma crise óbvia que estava a ser gerada pela forma como se evitavam os critérios determinados para o que podiam ser crises no nosso país – Um sistema ferroviário em colapso – ECO. Para satisfazer oportunísticas clientelas e aumentar descontroladamente os gastos ordinários do Estado, António Costa recorreu a todos os expedientes possíveis e imaginários para cimentar o seu padrão de estabilidade, comprimindo investimento público bem para lá do que tínhamos tido com a Troika, abriu as comportas do país para injectar uns euros fáceis nos impostos cobrados e aproveitou a patetice dos extremos para se defender dos sinais de outras crises que começavam ser visíveis – nos comboios porque Sérgio Monteiro tinha sido tão competente durante a Troika que as suas políticas perduravam, não porque o PS tivesse desabado o investimento público, na habitação porque o grande capital arrebanhava tudo para alojamento local (nem sei que dizer desta tese), na saúde porque os privados sacavam dinheiro do orçamento do Estado em vez de ir para o SNS, e por aí fora. O gado, então ainda bem comportado, consumia a erva toda sem pestanejar.

Como defendi nessa altura e desde então, a conjuntura altamente favorável (quantitive easing do BCE, injecções massivas de dinheiro com Covid-19) e esta definição de crise que orientou a trajectória para a vitória política de António Costa resolveu rápido as suas prioridades mas começou a gerar crises estruturais em vários sectores que vão ser muito mais complicadas de resolver do que uns meros 11% de défice como o que Passos Coelho herdou de José Sócrates. Sim, os longos oito anos e meio de António Costa foram substancialmente piores que os seis nebulosos anos de José Sócrates.

Tudo é uma crise de infraestruturas

Importa ganhar perspectiva.

A área metropolitana de Lisboa passou de 1,2 milhões de habitantes por volta de 1950, para 1,7 por volta de 1980 e está hoje em quase 3 milhões. No Porto, passámos de 1 milhão em 1950, estável por volta de 1980 e de cerca de 1,8 milhões em 2024. Portugal tinha 8,4 milhões de habitantes em 1950, praticamente 10 em 1980 e estimam-se em pouco mais de 11 milhões actualmente. Ou seja, só as duas áreas metropolitanas passaram de 27% da população em 1980 para mais de 40% da população nacional.

No interior, a desertificação continuou mas especialmente nas aldeias e vilas, com reforço ou pelo menos não decrescimento das suas cidades, sobretudo nas de média dimensão. Pólos importantes como Setúbal, Aveiro ou Braga cresceram imenso. Mais relevante ainda, Portugal é desde 1986 um país da União Europeia e abriu-se por fim, sem complexos, a Espanha e demais países do continente.

O único verdadeiro crescimento de infraestruturas de comunicação no nosso país cingiu-se à rede de telecomunicações (fundamental!) e às auto-estradas, a ponto de Portugal ser hoje um dos países europeus com mais densa e mais qualificada rede do género a nível Europeu, apesar de estar na cauda da Europa em PIB per cápita, a real medida do desastre competitivo a que temos assistido em Portugal nos últimos 30 anos.

Três dos maiores problemas do país estão sectorialmente identificados como sendo habitação, saúde e educação mas, na realidade, têm na sua base um grave problema de mobilidade ao longo do território. As áreas metropolitanas não tiveram investimentos nas suas redes compatíveis com o crescimento populacional, embora o Porto se possa queixar menos – houve a qualificação da rede suburbana e o desenvolvimento do Metro do Porto, embora tal não se tivesse substanciado em nenhum novo eixo suburbano (a linha da Póvoa do Metro do Porto já existia como ferrovia pesada). Em Lisboa, apesar da duplicação praticamente ter duplicado nos últimos quarenta anos, apenas o eixo Norte-Sul é evolução digna de registo.

Não é por isso de espantar que a crise de habitação seja, antes de mais, uma crise de mobilidade – no espaço público, apenas recordo tal ser sublinhado por Ricardo Costa, director do grupo Impresa, há cerca de dois anos. Não devia ser um problema social ter de viver em Mafra, Ericeira, Odivelas, Loures, Porto Salvo, Alcabideche, Montijo, Alcochete, Seixal ou Barreiro. Podemos gostar mais ou menos da dispersão de população que existe nesta área metropolitana, mas qualquer visita a metrópoles similares europeias nos permite ver que acréscimos populacionais similares foram acompanhados por investimentos faraónicos nas redes de transporte pesados (únicos interessantes para subúrbios, por via da capacidade e velocidade que oferecem) conectando centrica e excentricamente os pólos de população e actividade económica.

O contágio para a saúde não é também de espantar, dada a dificuldade de atrair profissionais para estas zonas, ou pelo menos para os reter lá, dada a dificuldade de arranjarem habitação próxima ou em local conveniente para deslocações pendulares diárias. Se passarmos à educação e à falta de professores, concluímos o mesmo cenário. Se extravasarmos para a vida familiar das pessoas necessárias a estas necessidades, concluímos que a dificuldade de regressar a casa ao fim de semana (ou a meio da semana) é real, dependendo basicamente do transporte rodoviário, num país pouco interconectado e onde até a ligação entre Lisboa e Porto, uma das mais densas da Europa, continua a demorar sensivelmente três horas de comboio.

Se olharmos a regiões como o Algarve, o cenário não é melhor e tem a agravante das necessidades altamente sazonais pedirem ainda mais capacidade de boa e eficiente mobilidade para permitir reagir a essas flutuações, mas ser uma região altamente encravada entre serras e mar e com transportes super deficientes no seu interior. Seria de esperar um cenário diferente perante tanta contenção no investimento?

As tropelias impostas ao território

Os últimos dez anos foram férteis em grandes declamações – desde as mais frontalmente fraudulentas como as de António Costa, às mais sovieticamente propagandistas como as de Pedro Nuno Santos e terminando na mais inútil estabilidade de políticas de Luís Montenegro. Que PS e PSD se debatam hoje com a incompreensão do que se passou nas mesas de voto não deixa de ser a maior assumpção de falhanço, com lugar destacadíssimo para o PS, que teve realmente a grande derrota de todo o sistema – ao menos, arrastou também a paleo-esquerda para o esquecimento de onde espero que não volte a sair. Do seu sectarismo brotou este esquecimento das necessidades reais das pessoas. Como dizia há dias Henrique Raposo na SIC Notícias, justifica-se que seja tão mais difícil viver em Lisboa do que em Braga? E, acrescento eu, justifica-se que num país tão pequeno e a precisar de promover mais pólos de desenvolvimento seja tão mais difícil conectar o Algarve do que as Astúrias, em Espanha?

A única resposta de mobilidade que o PS teve para o país – e que o PSD ainda não enterrou – foi a aposta em “económicos” Metrobus, sistemas que permitem vender a palavra “Metro” sem a mesma necessidade de capital, que oferecem prestações de velocidade dignas do tempo da tracção a vapor e uma capacidade de transporte pouco superior à carreira da província que ligava ao comboio que chegava de Lisboa. Os investimentos são de grande monta, mas são acima de tudo um decrescimento – seja na Lousã, em Loures e, quiçá, em Braga e Guimarães, o que o Estado está a dizer às pessoas é para desistirem. Só os mais pobres dos pobres se interessarão por tamanha pobreza, dada a falta de alternativa, e todos os restantes são convidados a reservarem imprescindível quinhão dos seus rendimentos para sustentarem carro particular.

O PS, que colapsou no Algarve já em 2024, teve o desdém de defender no seu Plano Ferroviário Nacional que para os défices de mobilidade um sistema de autocarros chegava, desenhando-o mesmo no plano FERROVIÁRIO. Afinal, para quem era, bastava. Fez igual no Minho, região cada vez mais fundamental do país e talvez a mais jovem, onde nem a evidente facilidade de criar as poucas ligações em falta para finalizar a malha ferroviária motivou mais do que incluir, no mesmo documento ferroviário, mais meia dúzia de riscos rodoviários.

Nas áreas metropolitanas a pobreza do exercício deixou de fora temas evidentes. A promoção de uma linha do Vouga igualmente afastada do sistema de bitola ibérica do resto da rede, talvez em nome da possibilidade de lá circular o comboio histórico de via métrica, manteve afastado um grande pólo populacional da facilidade de se deslocar a baixo custo, com conforto e velocidade. Em Lisboa, mencionar algum novo eixo ferroviário entre as linhas de Sintra e Cascais nem sequer se pode tolerar, pois antecipa-se um custo elevado que nem sequer se orçamentou mas já se proibiu. O tema da terceira travessia do Tejo era um tabu de políticos sem coragem parar assumirem que resolver problemas custa dinheiro – e que é preciso fazer escolhas e moderar outros gastos, claro. Falar de rapidamente ligar Loures e Malveira e Lisboa foi visto como uma excentricidade não pagável nas próximas décadas, e nem falemos de densificar a rede ferroviária na Margem Sul, zona cujo crescimento populacional foi brutal nos últimos 40 anos mas para onde nem se querem desenterrar reflexões que datam ao Estado Novo para precisamente chegar a mais cidades.

A nível nacional continua a ser impossível chegar a Vila Real ou Bragança, regiões que contribuem para o país com os seus recursos, onde o resto do país não tem problemas em desenhar grandes barragens ou minas a céu aberto, mas que depois conta todos os cêntimos do que pode custar o mínimo indispensável de conexão com o resto do país. Para o Algarve, parece que atravessar a patética serra do Caldeirão é uma obra digna do atravessamento do Monte Branco nos Alpes e continuamos sem dar a prioridade à nova ligação, enquanto a IP vai estudando de que forma renovar pela centésima vez o inútil e curvilíneo traçado existente que, em 90 quilómetros, impõe um tempo de viagem tão elevado como nos restantes 200 quilómetros da ligação a Lisboa, praticamente. Da tragédia das ligações a Espanha nem vamos falar.

Não apenas alguns planos continuaram patéticos e insuficientes, como nem têm execução. Como podemos prometer uma vida diferente a quem se mostra revoltado nas mesas de voto quando não conseguimos avançar com nada de verdadeiramente disruptivo para a vida das pessoas, pela positiva? Porque razão quando olhamos para os problemas do quotidiano das pessoas normais não procuramos os níveis de serviço que se esperam de sociedades ocidentais desenvolvidas e pensamos ser suficiente dar-lhes experiências nutridas em países do terceiro mundo? Porque razão queremos convencer as pessoas da falta de mão de obra quando o país deixou entrar 1,6 milhões de imigrantes nos últimos 10 anos? Como se fez nos anos 90, onde a atracção de mão de obra imigrante foi fundamental mas realmente apareceu nos estaleiros de obras que tínhamos, como já os portugueses tinham protagonizado nos estaleiros franceses nos anos 60?

Há muitos anos que defendo um esforço orçamental médio de 0,5% do PIB para desenvolver a rede ferroviária, quer nos subúrbios como ao longo do país. Essas propostas estão por este blog ou nas sucessivas versões incrementais do plano ferroviário defendido pela Iniciativa Liberal. Mas até esse esforço fica hoje curto, porque voltámos a passar 10 anos com investimentos pífios em volume, e pífios em ambição – que problemas resolve o dinheiro empatado na actual renovação da linha do Oeste? Que competitividade melhorou a patética intervenção na linha do Minho? O que melhorará a linha da Beira Alta após mais de três anos de fecho? O backlog só aumentou e não precisamos das pessoas que o incrementaram.

Falta deixar de brincar com as pessoas e ter exigência. Nós votamos e pagamos aos políticos para entenderem onde estão os problemas e tomarem opções ambiciosas. Sim, o país não pode agora pagar incrementalmente e de uma vez todo o adicional que as infraestruturas ferroviárias e o aparelho militar necessitam, mas certamente que num Estado que cobra a enormidade de impostos que cobra o português existirá muito onde necessariamente se poderá moderar o gasto para começar a resolver problemas das pessoas. As pessoas estão fartas de ser difícil viver a 20 quilómetros do seu local de trabalho, ou de terem de encontrar casa só ao longo de estreitos eixos onde é possível fazer vida diária normalmente (e que por isso são caríssimos) ou de até terem linha à porta mas os comboios estarem sempre em greve.

O PSD entrou no seu segundo ano de poder, está na altura de mostrar que quer mudar alguma coisa. Sendo eu justo com a definição mais acelerada de alguns investimentos há muitos anos presos, reservo-me o cepticismo até os ver concretizados e é óbvio que é preciso ir bem além deles para poder começar a fazer a diferença na vida das pessoas.

Caso contrário, sobra-nos o caos. Em boa parte, ele já aí está.