Obviamente recuse-se
Depois de meses de especulação, soube-se hoje que o consórcio AVAN que lidera o projecto da alta velocidade no troço Porto – Oiã, após adjudicação estatal, está mesmo a propor alterações tectónicas ao caderno de encargos que voluntariamente aceitou e a que concorreu, desdobrando a ponte sobre o Douro em duas (efeito funcional neutro) mas sobretudo alterando a excelente localização da estação de Gaia – exigida para Santo Ovídio – passando para Vilar de Paraíso, localização excêntrica e claramente subóptima na perspectiva de distribuição de tráfego.
O comportamento do consórcio é, antes de mais, pouco transparente e desonesto. Em nenhum documento do concurso em que foi a única proposta submetida existe latitude para alterar a localização da estação de Gaia, a que já está associado um plano de pormenor, nem a famosa banda de 200 metros para definição de traçado que o EIA autoriza pressupõe mais do que a deslocação lateral da exacta localização da via e da estação.
É evidente que o consórcio tem um de dois problemas: ou calculou mal o preço ou concorreu a algo para o qual não tem capacidade de engenharia para responder.
A questão do preço já oscilou entre a liderança do consórcio querer ficar com a seguinte concessão para poder também ter “o bife do lombo” para compensar a magra margem deste primeiro troço para depois nos dizerem que as mudanças sugeridas não se devem a custo, e que a nova solução até ficará mais cara. Caso para dizer se acham que os portugueses comem gelados com a testa.
No tema da capacidade de engenharia o consórcio tem sido completamente omisso, o que até se entende dado que estações com 60 metros de profundidade são banais há muitas décadas no mundo civilizado. Em Portugal, uma estação com bastante mais movimento do que a que se projecta para Gaia é a da Baixa-Chiado, a 45 metros de profundidade e numa zona de Lisboa cheia de complexidades subterrâneas. E, no fim do dia, a verdade é que o consórcio viu o caderno de encargos e achou que devia concorrer.
O que está em causa é simples: Portugal passou décadas a discutir o projecto de alta velocidade e passou os últimos anos a afinar detalhes. A solução encontrada para Gaia é muito melhor do que alguma que no passado se projectou – desde a simples definição da necessidade da estação, até ao encontro em Santo Ovídio com duas linhas de Metro que daí distribuem para zonas muito diferentes do Grande Porto, e rapidamente. O país decidiu então, através do Estado, avançar para a concessão deste troço por 1.600 milhões de Euros, esperando o benefício respectivo deste projecto melhorado. Apenas um consórcio apresentou proposta, comprometendo-se a cumprir o caderno de encargos por aquele valor. Se for aceitável rever todos os elementos ambientais – não sei como se enquadram alterações tão grandes sem uma revisão de todo o estudo de impacte ambiental! – e/ou rever também o preço e âmbito da concessão – afinal de contas, quem paga as extensões das duas linhas de Metro desde Santo Ovídio e quem aceita a diferença funcional clara que essas extensões implicam? – não será que teríamos muito mais candidatos? Afinal de contas, concorrer a um processo que é letra morta e que pode ser totalmente alterado a seguir é muito mais interessante do que o que foi publicado no concurso.
Perante isto, o Governo tem duas hipóteses: 1) é um governo que protege os interesses do Estado e seus cidadãos, reconhece que desta vez fez um processo liso, competente e bem orquestrado, e não cede a processos sem racional evidente e com óbvios problemas legais. Pode implicar um atraso, mas um atraso de 1 ou 2 anos não é nada ao lado do que esta cedência implica. 2) é um governo fraco, que com a fraca desculpa de querer cumprir prazos a qualquer custo (como se percebe no Ferrovia 2020, que é um sucesso a esse nível) aceita rebentar um projecto tecnicamente sustentado ao longo de anos a troco de um ajuste feito no guardanapo defendido com motivos publicamente assumidos que são dúbios e até contraditórios entre si?
O país não se importa de ter um atraso de um ou dois anos se isso for o preço para exemplificar que o interesse público e o planeamento estruturado de obras públicas é um valor maior. O governo tem estado em silêncio – como a IP – e afinal até já existe uma proposta formalizada para alteração. Que cheira a esturro, cheira, mas só depende do governo crucificar-se no altar da AVAN ou fazer valer o poder de representação da população que tem nas suas mãos.