
Apontamentos sobre o impacto da crise política nos caminhos de ferro
Estamos a caminho de deixar para trás 8 anos de Costa. Tirando Cavaco Silva, nenhum primeiro-ministro esteve nessa posição durante tanto tempo. Para um sector que habitualmente se queixa de que a evolução não é compatível com os ciclos políticos curtos, tão longa estadia de António Costa foi uma oportunidade quase inédita na nossa democracia. O que aconteceu?
O passado imprevisível
Nos caminhos de ferro como nas outras áreas, António Costa foi o mestre do empurrão com a barriga. Não surpreende assim que tenha actuado sempre fora de horas – e que o passado tenha mudado várias vezes, de modo a acautelar a narrativa do presente.
- Reactivo e não proactivo – só ao fim de quase quatro anos, com uma crise ferroviária inédita no nosso país, Costa percebeu que não podia continuar a esmagar o sector para ganhos políticos com a Geringonça – caiu a máscara a BE e PCP, as damas de honor dos maiores cortes orçamentais da história nos caminhos de ferro;
- O passado mexeu-se várias vezes. De permitir o brilharete de ao fim de dois meses de governo apresentar o Ferrovia 2020 (o PETI3+ preparado um ano antes), a ser culpado da falta de preparação dos projectos (problema só encontrado anos mais tarde, curiosamente), até termos problemas quase do tempo de Salazar e que “seriam impossíveis de corrigir rapidamente”.
- A crise de meios na construção só apareceu por alturas do Covid, mas quando apareceu o governo descobriu que isto afinal era uma causa estrutural com mais de dez anos. Sem qualquer auditoria às causas profundas dos atrasos do Ferrovia 2020, chega mais uma demissão socialista por corrupção sem que saibamos o que é preciso fazer estruturalmente para voltarmos a impedir uma situação destas.
Propaganda de grande nível, execução burlesca
Apesar de a própria qualidade dos powerpoints ter caído bastante ao longo dos mandatos de Costa, não perderam a centralidade. Fomos inundados de apresentações – o Ferrovia 2020, o PNI 2030, o Plano Ferroviário Nacional, as heróicas recuperações de carruagens com 75 anos, os comboios a hidrogénio (um abraço, camarada Galamba), o comboio português, a alta velocidade… vimos powerpoints para tudo.
Do renascimento efémero em 2019, a única coisa que realmente se instalou foi uma ala diferente do PS, mais caciquista, sectária e incompetente do que a anterior – mas com palco. Depois do óbvio determinado em 2019 por Nuno Freitas – que teve esse mérito, como pessoa razoável e de grande nível que é – a máquina panfletária deste PS burlesco aproveitou qualquer fotografia e qualquer elogio do óbvio (que eu também fiz) para instalar a ideia de estarmos perante semi-deuses, criaturas especialmente iluminadas que só têm um problema – sem mundo nem capacidade crítica, só a propaganda e a vassalagem ao líder importa, falando de locomotivas de 50 anos em Portugal e de locomotivas de idade similar no centro da Europa como se no centro da Europa essas circulassem ainda com os níveis de ruído com que originalmente saíram de fábrica, só para dar um exemplo. A improbabilidade desta ala ter conseguido um Nuno Freitas para começar o percurso só prova que a sorte não protege só os audazes. Pela barragem que fazem à frente do partido contra qualquer tipo de sugestão para fazer melhor, são hoje uma ameaça muito maior ao futuro do sector ferroviário do que meras ausências de protagonismo deste sector foram no passado e devem ser tratados como tal.
O nível de pensamento estratégico sobre infraestruturas aumentou imenso, graças à raridade da descoberta de Frederico Francisco, secretário de estado das infraestruturas, cuja carreira e capacidade académica falam por si e que trouxe uma forma de pensar diferente. Infelizmente, talvez por falta de vontade política noutros níveis, nem isso levou a que a Infraestruturas de Portugal se comportasse como uma subordinada da estratégia governamental, actuando claramente com uma agenda paralela amparada certamente por alguém mais bem posicionado no aparelho. De uma certa excelência de pensamento estratégico não saiu sequer a aprovação do Plano Ferroviário Nacional, apesar de prometido vezes sem conta e de não se vislumbrarem motivos para isso não ter acontecido há mais de um ano. Mais outra história que talvez nunca seja contada.
No lado da operação, o burlesco é visível pelas condições que o poder político deu às oficinas de Guifões, a única vitória visível real deste governo. Tendo sido uma simples reactivação, anunciada como se tivéssemos voltado aos tempos dos reis Católicos a reconquistar a península ibérica, três anos volvidos a oficina tem quase tanta gente como quando estava fechada – os salários são baixos, as autorizações para contratar também, e a oficina está hoje cheia de material e vazia de pessoas. Talvez fosse até mais produtivo voltar a concentrar o pessoal nas oficinas do Porto, como aconteceu no passado, o que diz bem da indignidade política neste caso – nem a sua maior aposta e onde fundam toda a propaganda de recuperação da CP é merecedora das condições mínimas para ter sucesso.
Em 2019 escrevi que, depois da recuperação de material circulante que iria permitir recuperar da escandalosa situação criada por António Costa e Pedro Marques, iria perceber-se se a CP estava realmente a mudar, ou se estava apenas a especializar-se em recuperação de comboios velhos. Em 2023, deixo essa óbvia conclusão para os leitores completarem.
O Ferrovia 2020 não será concluído em 2025, o PNI 2030 antes de começar já é impossível estar realizado em 2030 e a maioria dos projectos nem sequer estão adjudicados, portanto estamos ainda bem longe de chegarmos ao ponto de adjudicar obras. O Plano Ferroviário Nacional, cujo ritmo de execução previsto já era demasiado curto, fica para as calendas. E fica não pela interrupção do ciclo de António Costa, mas precisamente porque o ciclo de António Costa durou tanto tempo – se o PS já tivesse aprendido que também dá para corromper com negócios ferroviários, talvez isto andasse a outro ritmo. Que me perdoem os mais sensíveis, mas é a conclusão lógica num partido tão expedito em lavandarias e negócios obscuros, e sempre com tantas dificuldades de concretizar até uma reles electrificação de uma via férrea.
Não deixam saudades.
O que tem de ser prioridade
Já muito escrevi neste blog o que me parecem ser prioridades absolutas, instrumentos-chave para capacitar este país com um nível de mobilidade e qualidade de vida que não nos façam corar de vergonha quando atravessamos a fronteira.
Qualquer programa político deve separar claramente o que é alheio a ideologias, do que serão depois naturais opções programáticas. A prioridade aos caminhos de ferro deve materializar-se sempre com muito mais investimento anual na construção de novas vias e renovação de existentes, com autonomia de gestão total na CP e um reordenamento institucional do sector, para despolitizar o dia-a-dia das empresas e instituições do sector – se isto não acontecer, continuarão a perder conhecimento e talento, pois o ambiente instalado e altamente dominado por máquinas partidárias tem sido o maior entrave à captação e retenção de talento, especialmente nesta fase em que a renovação é fundamental, dada a elevadíssima idade média do plantel de IP ou CP, apenas para citar dois exemplos.
Assim, num patamar não ideológico, espero que os partidos acordem nos seus programas:
- Aprovação e aceleração da execução de um Plano Ferroviário Nacional ambicioso e alinhado com os objectivos de descarbonização da economia nacional – implica mais ambição nas áreas urbanas, implica trazer Viseu, Vila Real e Bragança para a rede e implica alterações estruturais em eixos fundamentais como no acesso a Madrid e ao Algarve;
- Reforço das dotações financeiras para os programas de investimento em curso e autorização imediata da IP a contar com dotações financeiras para a totalidade dos programas – de modo a acompanhar inflação que está a colocar problemas face a orçamentos inicialmente planeados e para não se pedinchar às finanças todos e quaisquer 5 euros para avançar;
- Opção da alta velocidade para criar mais capacidade na rede é absolutamente indispensável, e a forma como está realizado o projecto é o que mais convém ao país, sobretudo pela audaz opção por manter bitola ibérica – polémica só para quem prefere conspirações e pouco perceberá de operação ferroviária;
- A autonomização da CP dentro do Estado, independentemente da titularidade do seu capital – reconversão em sociedade anónima;
- Expansão das concessões em vigor (CP e Fertagus) para aumentar frotas e níveis de serviço exigidos;
- Reorganização do sector, para estabelecimento das hierarquias formais e funcionais que fazem sentido e que permitam regrar as relações de poder entre políticos e administração pública – considero isto fundamental, e detalhei em: Investimento Ferroviário – ponto de situação na CP – Transporte Ferroviário (portugalferroviario.net)
Depois, no patamar ideológico, certamente haverão outras coisas a discutir, como:
- Titularidade da CP e sua relação com o Estado;
- Modelo de organização da administração pública sectorial, com maior ou menor capacitação interna vs complementariedade com empresas privadas;
- Incentivos ao mercado ferroviário em múltiplas frentes: atracção de cluster industrial, atracção de concorrentes na operação, modelos de gestão de infraestruturas, entre outros.
Parece-me óbvio que no patamar ideológico estão coisas de importância menor e cuja real utilidade só existe num prazo mais alargado e posterior à execução do que me parecem urgências totalmente alheias a ideologia e onde espero que todos os partidos candidatos às eleições coincidam, de forma mais ou menos explícita, para assegurar que a seguir a Costa venha quem realmente queira fazer coisas, e não apenas arrastar os pés, como estava a acontecer.
Só pode acelerar e é essa a exigência a todo o sistema político!