
IP – The Kids Aren’t Alright
Choque de realidade. A Infraestruturas de Portugal está a precisar de um enfrentamento com a realidade, de tão ensimesmada que é a própria existência. O facto de se destacar face a uma CP como tendo uma estrutura muito mais profissional e capaz de determinar os resultados dos seus planos não significa que tenha uma performance necessariamente melhor que a de um gestor de infraestruturas do terceiro mundo – sobretudo porque talvez os objectivos a que aponta sejam próprios dessa realidade e não da que o país exige.
Ficam aqui alguns exemplos de como a empresa está a apontar totalmente ao lado na sua missão, criando um gestor de infraestruturas que entrega resultados extremamente maus e nada em linha com a imagem profissional que a empresa projecta para o exterior. É um gigante com pés de barro e está na altura de toda a IP compreender isso, de cima a baixo.
Máxima disrupção na circulação ferroviária
A gestão de projectos de obras ferroviárias ganhou importância com o retomar do investimento no pós-troika. É uma gestão de projectos realizada no vácuo, como se o objectivo da empresa fosse simplesmente executar determinados projectos de A a Z, com mais ou menos atraso, com mais ou menos dinheiro. Pois isso não é verdade – a missão da IP é gerir os projectos de modo a entregar os benefícios sociais e económicos no mais curto espaço de tempo minimizando os impactos sobre todos os utilizadores do sistema enquanto duram as obras.
O exemplo da linha da Beira Alta é perfeito – vendido com argumentos pomposos, o encerramento da linha era um desastre anunciado que as desculpas inventadas pela administração só reforçam – como é possível que tenha sido confirmada a ordem de encerramento para obras se, nos dias e semanas anteriores, se sabia do atraso na entrega de materiais, da dificuldade de mobilizar equipas para iniciar trabalhos com o ritmo desejado, e por aí fora? Não existem control gates ou foram ignoradas na administração? O resultado está à vista.
Na linha do Sul e de Sines, num facílimo projecto de ampliação de 3 ou 4 estações, os impactos sobre a circulação duram há anos e têm-se agudizado em 2024 por uma gestão de projectos que só vê para dentro, ignorando que um dos principais factores de sucesso do projecto é ele desenrolar-se com pouco impacto nas circulações. Ainda ontem, ao passar por Canal Caveira, observei o que me vinha sendo relatado há várias semanas – já foram instaladas as novas agulhas da estação, mas não estão ainda motorizadas e sinalizadas, pelo que estão fora de serviço. E isso implica uma limitação de velocidade muito expressiva (30 km/h) à passagem pela estação, penalizando comboios de passageiros em zona normalmente autorizada a 190 km/h e comboios de mercadorias pesados que enfrentam duras rampas dos dois lados da estação. Aparentemente, ainda não existem motores e sinais para instalar, mas a gestão do projecto achou que, havendo agulhas, era para instalar já – em vez de duas ou três semanas de limitações para finalizar toda a instalação e ensaios, projectam-se mais alguns meses desta situação. Quem é que pode achar que este projecto está a ser um sucesso?

Também nesta obra, apesar dos anos que já leva o empreendimento, não conseguiram planear a intervenção na estação de São Bartolomeu da Serra (único ponto de cruzamento até aqui existente na linha de Sines) para acontecer apenas depois de entrar ao serviço a nova estação técnica de Abela – que continua fora de serviço, em moldes similares a Canal Caveira. O resultado é que neste momento a linha de Sines não tem estações de cruzamento… e é apenas a mais importante linha para a logística assente em ferrovia no país. Talvez a gestão de projectos seja muito profissional e altamente competente – aliás, tenho mesmo a certeza disso – mas mais uma vez está a perseguir objectivos errados e por isso falha claramente na protecção do essencial.

O caso burlesco das plataformas
As plataformas de estações são outro exemplo daquilo em que a Infraestruturas de Portugal se tornou com esta administração – para poupar uns trocos aqui e ali (o que é notável numa empresa que nem consegue esgotar os fundos disponíveis), são feitas intervenções que limitam para lá dos enquadramentos legais existentes a capacidade da operação do transporte de passageiros. Falei sobre o aspecto regulamentar por aqui, sem que nada disto comova reguladores e IMT, já nem falando dos políticos, mais do que alertas para o tema: Plataformas de passageiros – indesculpáveis mínimos olímpicos – Transporte Ferroviário (portugalferroviario.net)
As plataformas de 80 metros generalizaram-se em renovações, e mesmo algumas maiores (de 100 ou 150 metros) não entram nas normas em vigor, sem qualquer comoção da estrutura. As plataformas estão provavelmente bem feitas mas, uma vez mais, são péssimos exemplos de administração da rede porque falham o alvo.
A cereja em cima do topo do bolo é a forma como a IP começou a distribuir gradeamentos pelas estações, em zonas de plataformas não alteadas. Para a IP, parece concebível não apenas não altear o restante comprimento de plataformas pré-existentes, como ainda limitar a sua utilização, criando a situação de extrema insegurança que as imagens abaixo documentam. De uma situação potencialmente insegura de cair do comboio por diferença de altura excessiva entre comboio e plataforma, passamos a uma situação de potencialmente ficar bloqueado entre comboio e plataforma, aumentando muito o risco de acidentes pessoais. Como é que uma empresa pode ser tão boa e tão profissional e entregar absurdos de risco mortal como estes? Bem sei que o ónus final nestas coisas está com os operadores, mas com a IP a comprimir tanto a capacidade das estações, só se os operadores retrocederem décadas na sua oferta é que podem assegurar total segurança e que tudo caiba nas micro-estações que a IP entrega.


Perante a total inação da autoridade nacional de segurança, a aplicação destas barras generaliza-se de norte a sul, supostamente por razões de segurança – a implementação parece estar bem feita, mas uma vez mais implementa-se algo que tem um objectivo errado e que, de forma óbvia para qualquer pessoa provida de senso comum, degrada significativamente a segurança dos utilizadores do sistema.
Como se não bastasse, a IP adoptou nos últimos anos um novo modelo para o conforto dos passageiros – abrigos minúsculos, mesmo em estações enormes como Gaia, que mais parecem saídos de um Gulag soviético do que de uma empresa que se projecta moderna, profissional e ambiciosa num país da Europa Ocidental. Não há qualquer justificação para que se entreguem as estações a pequenos aglomerados uniformes de betão cinza escuro, fracamente iluminados, sem dimensão suficiente para proteger as pessoas dos elementos, e que obviamente funcionam já e funcionarão como chamariz para deliquência de diversos tipos.
Em vários casos, estes abrigos substituíram outros, muito mais antigos, que cumpriam muito melhor a função para que estavam destinados – abrigar e dar conforto aos passageiros. Uma vez mais, a IP talvez esteja a ter sucesso num programa de modernização e standardização de abrigos nas suas obras, o problema é que novamente o objectivo do seu programa está completamente errado – devia estar centrado em objectivos funcionais decentes e que pudessem ser comparados com os nossos parceiros, em vez de ser uma cega aplicação de um qualquer standard soviético que ninguém pediu e ninguém queria utilizar. Quando se somam a isso passagens inferiores novas como a de Valadares, uma estação de imenso movimento, projectadas para um fluxo muito inferior ao real da estação e com condições claustrofóbicas, obviamente só se acaba a promover passagens ilegais pelas vias, mais delinquência, sentimento de insegurança para os passageiros e exposição aos elementos.

No capítulo da informação aos passageiros a situação não é melhor, e se a IP acha que tem bons resultados como administradora de rede, recomendo visitar os apeadeiros no meio do deserto de Marrocos para ver que até aí, mesmo em plataformas que são pouco mais que um aglomerado de areia, está um placar electrónico com informação sempre actualizada e legível sobre as circulações. Qual é a realidade por cá, mesmo?
A resiliência da rede e a resposta aos incidentes
Nos últimos 10 anos, a super profissional empresa passou a normalizar os encerramentos de via por muitas horas para resolver casos triviais, que sempre foram normais na rede – uma árvore que cai, uma catenária que se rompe, etc. A exploração ferroviária da empresa está num patamar lastimável que não compara sequer com muitas redes fora da Europa cuja realidade conheço.
Ainda ontem, um infeliz acontecimento com catenárias entre Lisboa e o Entroncamento semeou o caos durante horas e horas, e de uma previsão de 2 a 3 horas para restabelecer o serviço ao início da tarde de ontem passou-se para uma situação em que só hoje, Domingo de manhã, a situação foi resolvida. Não está aqui em causa a dificuldade da reparação e o empenho das equipas reunidas para a reparação – estas continuam a ser o melhor que a empresa tem, e estão muito pouco reconhecidas pela gestão de topo. Mas a IP será provavelmente o único administrador de rede da Europa que não tem meios de socorro que active para fazer fluir a circulação ferroviária enquanto a energia eléctrica não é reposta. Em qualquer lado da Europa, com uma interrupção da energia com previsão de mais do que um par de horas é o próprio administrador da infraestrutura que reboca os operadores pelos kms necessários sem catenária, com tracção diesel, para pelo menos manter a circulação a rolar. Pois aqui nem é o caso agora, nem será no futuro – a IP é o único administrador da Europa que não tem já nem tem em concurso qualquer frota de locomotivas para resposta a desafios deste género – podem ser mais ou menos raros, mas quando acontecem têm de ter uma resposta capaz.
Mas também podemos citar muitos outros casos que fazem duvidar da real atenção da empresa ao que importa – a exploração da rede. Por exemplo, a cada dois ou três meses a variante de Alcácer tem um problema de sinalização que impede os comboios de circular durante várias horas. É um problema que existe há anos e que é agravado pelo facto da IP, contrariamente à generalidade dos outros administradores de infraestruturas pela Europa, não dispor de instruções operacionais que permitam desviar facilmente comboios pela linha paralela (a linha do Sul), mesmo em casos em que o maquinista titular não esteja certificado a esse troço (caso dos maquinistas da CP, que já não percorrem regularmente o traçado original da linha do Sul). Não sei se a IP conhece esta forma de ultrapassar incidências, da competência do administrador da rede (ver caso francês), mas é tão banal fora de portas que custa a acreditar que ninguém ainda tenha olhado para isso. Nem num raro caso em que a rede tem uma redundância o administrador de infraestruturas o aproveita.
E podemos falar também do AMV/Contador de eixos de Belmonte, que nunca funcionou bem desde a inauguração em Maio de 2021, mas que por lá continua a brilhar semanalmente. Se calhar a nível nacional a IP poderá dizer que há poucos casos de equipamentos com falta de fiabilidade, o problema é que quando se repetem sempre nos mesmos locais indicia que também não há resolução estrutural à altura. Em troços de via única, o impacto é muito mais significativo e também por isso, na análise de risco operacional, este tipo de problemas deviam merecer um tratamento muito mais prioritário.
Acresce a tudo isto que na componente da gestão da circulação tem-se perdido know-how – e talvez, sobretudo, capacidade de gestão. Seria impensável há 20 anos verem ser tomadas decisões de regulação no dia-a-dia, que em vez de maximizarem as capacidades tecnológicas de topo que foram instaladas (e que todos pagámos!), acabam a trazer uma fluidez de tráfego e uma flexibilidade da operação ferroviária que é inferior, em muitos casos, ao que se tinha a seu tempo com o cantonamento telefónico – o que é um contra-senso total!
Um problema de cultura de gestão
O problema da IP não é ter juntado o alcatrão ao carril, não é ter separada a roda e o carril, não é ter um logótipo verde ou azul e não é, sequer, um problema dos políticos darem mais ou menos meios à empresa. O problema da IP é sobretudo de cultura de gestão. Uma cultura que está a exponenciar as debilidades da estrutura mas que, acima de tudo, está a violentar a cultura de exigência e as capacidades técnicas que boa parte da estrutura da IP tem e que, aí sim, se deve orgulhar.
Não é admissível que um gestor de infraestruturas possa orgulhar-se só de powerpoints bem feitos, de passear fatos aprumados ou de liderar apresentações competentes. Esse é um lado de profissionalismo que só fica bem, mas não é suficiente. Quando se projectam estações com standards que já estavam obsoletos em 1900, quando se introduzem elementos que pioram a segurança dos passageiros, quando se subjugam as operações a projectos feitos para se auto-alimentarem ou quando se ignora o valor da reacção a eventos adversos, está-se a negar basicamente tudo o que é de mais relevante num gestor de infraestruturas.
A IP como está não serve. Toda a gente o sabe, dentro e fora da empresa, mas o poder político teima em não agir apesar da consciência que tem de tudo isto. O anterior governo criou um manto de inimputabilidade na empresa que, de forma totalmente previsível, exponenciou os erros grosseiros na gestão e evolução da rede. Este governo está há 4 meses no poder e não terá muitos mais para mostrar se quer fazer diferente.
O que há de profissional na IP são os seus funcionários. A soma dos funcionários carece de uma cultura de gestão rigorosa, que se baseie em exemplos virtuosos e em objectivos colectivos meritórios. Tal como noutros casos do sector de que já tenho falado, em primeiro lugar são os funcionários da empresa que merecem um alinhamento diferente da empresa. Sem nunca nos esquecermos que o país gasta, necessariamente, muitos recursos com um administrador de rede não para assegurar as conveniências e duvidosos benchmarks de administrações, mas antes para ter uma rede que sirva os seus utilizadores – passageiros, mercadorias e operadores.
O tempo para tolerar e financiar absurdos tem de ter um fim.
Suponho que se está administração da IP for algum dia, corrida, e substituída por outros mais competentes, será necessário modernizar todas as estações nas Linhas do Oeste, do Norte, do Minho, e do Algarve, para terem condições (plataformas longas e alteadas, coberturas maiores, e integrais em vez de meros abrigos, ecrãs em cada cais, e PIPs/PSPs), e a criação de verdadeiros standards, adaptados a cada tipo de estações (suburbanos, regionais, estação que vê todo o topo de tráfego, numa grande cidade, ou numa cidade média, etc) ?
E em relação à informação ao passageiro, por acaso, tinha visto no Diretório da Rede que maior parte das estações da Linha do Minho, do Norte, algumas do Oeste e do Algarve eram supostas ter ecrãs como existem nas outras estações.
Só não percebi se vão apenas instalar uma daquelas televisões por estação, ou se vão também instalar um ecrãs de informação em cada cais 🤷
É curioso como em certas áreas do sociedade, o governo actual (AD) tomou a iniciativa pronta de substituir chefias e relias. Mas na ferrovia não teve essa preocupação perante um bando de gente que mostra tamanha incompetência há tantos anos. As iniciativas tomadas recentemente, podendo ser positivas, surgem num momento em que, muito provavelmente, a infraestrutura e o operador de passageiros estatal não conseguirão dar resposta à procura que irá surgir. Falo do novo passe nacional a 20€, que com a introdução do serviço IC nas opções do passageiro, sofrerá provavelmente uma sobrecarga na procura.